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Não foi suficiente: uma década da Lei do Feminicídio e a urgência de novas respostas

8 de dezembro de 2025

*Por Andressa Schpallir

As últimas semanas mostraram que o Brasil ainda tem muito a avançar para por fim à violência de gênero contra mulheres. Diversos casos de feminicídio e agressão vieram a público, mostrando que o ódio contra as mulheres é uma realidade para a qual a população e o Estado não podem fechar os olhos. Neste domingo (7), milhares saíram às ruas em Belo Horizonte e diversas cidades brasileiras em protesto contra este cenário revoltante de violências.

Foi em março de 2015, há pouco mais de dez anos, que o Código Penal passou a prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. A Lei do Feminicídio, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, tipificou o assassinato de mulheres em razão de gênero – quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou o menosprezo ou discriminação à condição de mulher – e estipulou penas mais severas para esse tipo de homicídio.

No final de 2024, o Pacote Anti Feminicídio, sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, passou a considerar o feminicídio um crime autônomo e aumentou as penas para 20 a 40 anos de prisão. Outros crimes também tiveram suas penas recrudescidas quando cometidos contra mulheres por questões de gênero, como lesão corporal e injúria, calúnia e difamação. 

A Lei do Feminicídio pode ser considerada um marco histórico no combate à violência contra as mulheres por reconhecer seu caráter estrutural na sociedade. Porém, os dados mostram que não foi suficiente para barrar o crescimento dos crimes. 

Desde a promulgação da legislação até janeiro de 2025, de acordo com o Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública), o Brasil registrou ao menos 11.882 casos de feminicídio, com um aumento de 176% nos registros. Apenas em 2024, foram 1.459 vítimas, ou seja, quatro mulheres foram mortas por dia no país apenas por serem mulheres. 

Em 2025, a barbárie vem se repetindo. De janeiro a setembro, 1.075 mulheres perderam suas vidas vítimas de feminicídio e mais de 2,7 mil mulheres sofreram tentativa. Os dados chamam mais atenção porque, nos últimos anos, os casos de homicídio dolosos apresentaram queda nos registros – inclusive os cometidos contra mulheres. 

Na opinião de Laura Farias, presidenta do Movimento Popular pela Mulher (MPM) de Belo Horizonte, o combate à violência contra mulheres e meninas passa por vontade política e investimentos em políticas públicas. Ela aponta que são dois os principais fatores de risco. O primeiro é cultural: “A cultura do estupro e da submissão e da não valorização do próprio corpo e da própria imagem faz com que muitas mulheres entrem e se mantenham em relacionamentos abusivos, e que tenham dificuldade de sair por não se enxergarem como pessoas dignas de amor e cuidado.” 

O segundo fator é estrutural e passa pela segurança pública. Para Laura, as ruas, os espaços públicos e políticos e até as casas, dentro do âmbito doméstico, não são lugares seguros para meninas e mulheres. “O risco se amplia quando não se tem políticas públicas e investimentos voltados para essa proteção, quando a pauta das mulheres é colocada como uma pauta setorial e secundária, e portanto, que requer menos atenção.”

Ela ainda afirma que não é possível avaliar o cenário de agressão e violência contra mulheres sem passar pelo aspecto da classe e da raça. “É importante dizer de quais mulheres estamos falando. Mulheres que se encontram em determinadas condições de vulnerabilidade estão muito mais suscetíveis a permanecerem em situações de violência com muito menos assistência socioeconômicas para conseguirem se livrar dessa situação, o que leva, em muitos casos, ao feminicídio.”

“Uma mulher que passa fome, que não tem onde morar, que vive em situação de insegurança, que não conseguiu completar seus estudos, uma mulher negra, periférica, está muito mais suscetível do que mulheres que se encontram em outras posições de classe”, explica. “E essa avaliação precisa ser feita nas análises de políticas públicas e na maneira como essa pauta tem sido tratada como um todo.”

Machosfera: território livre para a misoginia

Se a insegurança se faz presente nas ruas, espaços públicos e até dentro das casas, na internet não é diferente. Quase 9 milhões de brasileiras relataram ter sofrido algum tipo de violência digital nos últimos 12 meses, em pesquisa realizada pelo DataSenado. A misoginia online não é representada por ataques isolados, mas é o centro de um ecossistema que já tem nome, a “Machosfera”.

Pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop), da Fundação Getúdio Vargas (FGV) se debruçaram sobre essa rede. Eles revelaram um ecossistema com mais de 220 mil usuários brasileiros distribuídos em 85 comunidades voltadas ao ódio e violência contra meninas e mulheres. Muitos desses grupos são monetizados e têm ligação com movimentos conspiracionistas e neonazistas. 

“Eles operam como ecossistemas fechados que misturam afetos, senso de pertencimento e suposta rebeldia contra um inimigo difuso chamado ideologia de gênero”, afirma Julie Ricard, coordenadora do estudo e pesquisadora do DesinfoPop. Ela explica que os grupos não surgem por acaso, mas são estruturados com técnicas de marketing digital, narrativas de guerra cultural e uma brutal simplificação da realidade. “Quando percebem, já estão circulando num ambiente que oferece respostas fáceis para angústias complexas e normaliza preconceitos como se fossem coragem intelectual.”

A pesquisadora também afirma que o crescimento de discursos masculinistas e misóginos interfere diretamente no aumento dos crimes de ódio contra as mulheres. “É o padrão histórico da radicalização. Quando discursos violentos se normalizam, eles deslocam o limite do aceitável. Passam de piada para suposta opinião e dali para justificativa de práticas concretas. A misoginia organizada cria narrativas de permissão moral para ataques.”

Regulação das plataformas

Mais do que permitir a misoginia, as plataformas digitais influenciam diretamente na capilaridade desses discursos, ampliando seu alcance. Para Ergon Cugler, coautor do estudo e pesquisador do DesinfoPop, não se trata de falha, mas de arquitetura. “Os modelos de negócio das plataformas dependem de engajamento, e o ódio engaja. O resultado é um ambiente onde minorias são atacadas enquanto infratores recebem alcance.” Ele afirma que até há moderação, mas é tardia, desigual e insuficiente. “O Brasil virou um dos mercados onde essas empresas mais experimentam políticas de moderação de baixo custo, o que significa respostas fragmentadas e pouco eficazes.”

Combater a rede de ódio digital exige políticas efetivas. Para Cugler, são três frentes necessárias: políticas públicas de educação midiática que deem aos jovens ferramentas para identificar manipulação emocional, misoginia e teorias conspiratórias; regulação das plataformas com transparência algorítmica e responsabilização por dano, de forma a evitar que a população continue refém do lucro acima da democracia; e investimento em proteção e acolhimento das vítimas e em investigações especializadas em violência digital. “Não é só punir. É reduzir a capacidade de recrutamento desse ecossistema, quebrar seus incentivos e reconstruir condições de convivência democrática.”

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