A tensão ainda reverbera nas escolas e universidades brasileiras enquanto alunos e professores tentam lidar com uma espécie de “efeito contágio” após o massacre de Suzano, em 13 de março. Não é possível mensurar o volume de casos que representa um risco real ou é apenas alvo de trote por adolescentes, cuja trollagem pode levá-los à Justiça por ameaça e apologia ao crime. Em diferentes Estados brasileiros, as autoridades policiais investigam denúncias de planos de novos ataques. São ameaças feitas principalmente pela Internet, várias delas já apontadas como falsas por investigadores. É o caso, por exemplo, dos 11 adolescentes identificados como fontes de falsas ameaças a distintas escolas no Distrito Federal. Em outros estados, há casos em que policiais chegaram a apreender celulares, computadores e até armas brancas ao investigar denúncias de outros atentados. As ameaças — que, segundo especialistas, muitas vezes são usadas por jovens para aparecer em um ambiente no qual se sentem invisíveis, sem intenção de efetivar o crime — têm levado instituições de ensino a reagir, com rotinas alteradas e receio dos estudantes.
Um jovem de 18 anos que se exibia com armas de paintballnas redes sociais foi detido no Mato Grosso na quarta-feira passada após enviar mensagens no WhatsApp nas quais ameaçava um ataque semelhante ao de Suzano em uma escola estadual. Quando soube da ameaça, a diretora da escola procurou a polícia e registrou um boletim de ocorrência. O jovem foi detido e liberado logo após prestar depoimento. Nenhuma arma foi encontrada com ele. Na semana anterior, outro aluno de uma escola de Belo Horizonte publicou nas redes sociais uma imagem na qual exibia duas réplicas de arma de fogo e uma faca. Na legenda, uma mensagem dirigida à escola: “Segunda tem”. A polícia apreendeu as armas, além do computador e do celular do jovem para averiguar se era uma ameaça real. O Governo mineiro chegou a intensificar a patrulha escolar no entorno da instituição, mas o jovem depois disse à direção que não planejava um ataque e que a postagem foi “uma brincadeira de mau gosto”.
Casos como estes vêm se multiplicando em escolas de vários Estados brasileiros desde o ataque em Suzano — um fenômeno chamado por especialistas de efeito “contágio”, quando a divulgação massiva de informações sobre o crime e os autores pela imprensa ou pelos cidadãos nas redes sociais inspira outros jovens a buscar a mesma notoriedade. “Muitos desses meninos não têm como fazer [um atentado], mas apavoram os demais colegas”, diz a pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) da Unicamp, Telma Vinha. Muitos deles, aponta, têm a característica de sofrerem por se sentirem excluídos no ambiente escolar e veem na intimidação um caminho para deixar de ser invisíveis. “Eles dizem que têm acesso a deep web e que sabem como fazer, mas é uma necessidade de visibilidade”, acrescenta.O fenômeno, afirma a pesquisadora, tem levado instituições de ensino e secretarias de Educação a viverem um dilema sobre como lidar com a situação. Acionar a polícia pelo risco de uma ameaça real ou encontrar outras formas de atuar com esses adolescentes? “Uma das coisas que a gente tem reforçado é que as escolas criem redes de escuta e se aproximem desses meninos como prevenção. Tem coisas com as quais não se pode brincar, e a escola precisa trabalhar isso com eles”, defende Vinha.No Brasil, esse contágio não está restrito às escolas.
Na última semana, pelo menos três universidades sofreram ameaças ou iniciaram ações para evitá-las pela tensão que se instalou entre os estudantes. Ao temor causado após o ataque de Suzano, se soma o fato de que, desde as eleições, as universidades passaram a ser apontadas por alguns grupos como espaços ideológicos, o que motivou episódios de ameaças de crime de ódio. A Universidade de Brasília (UnB) chegou a enviar um e-mail aos alunos para que comuniquem sobre possíveis indícios de ataques. Em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, a Polícia Federal foi acionada na última quarta-feira para apurar ameaças. Uma postagem na Internet causou tensão sobre um suposto ataque direcionado a mulheres e negros no campus Vale, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A instituição manteve as atividades, mas reforçou a segurança interna.No mesmo dia, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também acionou as autoridades policiais para investigar uma ameaça por e-mail de ataque que teria sido feita dias antes por uma pessoa reprovada no sistema de cotas.
O temor era porque aquela quarta era o dia de matrícula dos novos alunos. O endereço de IP usado pelo autor já foi identificado, e as autoridades policiais apuram o caso. Embora oficialmente a universidade tenha decidido manter as atividades, a investigação gerou medo em parte dos alunos, e professores chegaram a cancelar algumas aulas.”Nas redes sociais, tem um monte de gente achando que professores vão às universidades públicas fazer coisas que não são sérias. Os alunos sentem muito isso, acabam absorvendo que estão em um lugar colocado como inimigo por uma certa parte da população”, diz a pós-doutoranda Lígia Diniz, que dá aulas no curso de Letras da UFMG. Ela conta que decidiu cancelar as aulas da última quinta-feira após receber uma enxurrada de mensagens de estudantes nervosos. “Decidi fazer isso para não colocar os alunos em uma situação de estresse, não porque acreditasse [em um risco real]”, explica, destacando que não há clima de pânico e que parte dos alunos circula normalmente no local.
“A coisa que mais me deixou chateada não foi o medo, mas a sensação de dar o que eles [que ameaçam] querem. É como se sujeitar a essa afronta, que acho que tem mais um efeito moral de deixar a gente acuado”, emenda. A professora recorda que, logo após o massacre de Suzano, foi procurada por um aluno que temia um ataque semelhante neste momento de animosidade contra as universidades. A estudante de Letras da UFMG, Isabelle Costa, tem esse receio e diz que ficou aliviada quando os professores cancelaram suas aulas na quinta e na sexta por conta da ameaça. “Fiquei com muito medo de voltar”, diz.
Brasil atual, um terreno fértil ao ódio
O atual momento do Brasil é interpretado por pesquisadores como terreno fértil ao problema, já que representantes políticos — incluindo o presidente Jair Bolsonaro — combatem o que chamam de “politicamente correto” e defendem expressamente uma política que visa ampliar o acesso às armas. Especialista em linguagem e adolescentes, a psicóloga Amanda Mont’Alvão explica que essa cultura de armas se associa a fantasias criadas pelos jovens de conseguir a atenção da sociedade pela produção de ameaças de atos violentos. “O encorajamento ao discurso de ódio promovido por muitos de nossos representantes é inadmissível, uma vez que valida intolerâncias cotidianas, fragmenta a coletividade e fomenta confrontos onde deveria haver mediação”, opina.
“Neste momento da sociedade, há um rompimento de um contrato civilizatório. A gente não podia ter um discurso de ódio nem xingar, mas de repente você autoriza isso, é algo que passa a ser permitido”, afirma a pesquisadora Telma Vinha. Ela destaca que isso não significa dizer que os representantes políticos autorizam massacres, mas seus discursos acabam incluídos entre os vários fatores que ajudam a criar a ideia de que se pode insultar, de que está tudo bem que manifestações preconceituosas tenham espaço na Internet. Outro fator, por exemplo, seria os grupos na Internet que glorificam autores dessas violência e até ensinam como produzir massacres. O Ministério Público investiga casos de jovens que celebraram o caso de Suzano na Internet (seja nas redes sociais ou em fóruns da deep web). Eles poderão responder judicialmente por incitação ao crime.
*Beatriz Jucá para o El País
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