Para Flávio Rocha, especialista em geopolítica, Bolsonaro busca alinhamento com Estados Unidos a curto prazo
Por Lu Sodré, no Brasil de Fato
Após quase 20 anos de negociações, Brasil e Estados Unidos estão prestes a fechar os termos do novo Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), que concede o uso comercial da base de Alcântara, no Maranhão, para o país comandado por Donald Trump. A informação foi antecipada pelo jornal O Estado de S. Paulo na última segunda-feira (11). A expectativa é que o documento seja assinado na próxima semana, durante a visita do presidente Jair Bolsonaro (PSL) aos Estados Unidos.
Os esforços para concretizar o acordo foram retomados pelo governo Temer (MDB) em 2016, após duas tentativas frustradas: no Congresso Nacional, em 2001, e por meio de plebiscito, na mesma época. A proposta original do governo estadunidense era proibir a utilização da base pelo Brasil, devido à confidencialidade tecnológica.
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Flávio Rocha afirma que, a partir dessa nova negociação, os Estados Unidos teriam acesso ao local mais estratégico – de todo o mundo – para lançamento de satélites. O especialista em geopolítica e segurança internacional entende que o acordo é motivado por uma política “ultra-neoliberalizante”.
“Busca-se um alinhamento geopolítico a todo custo, a curto prazo, com os Estados Unidos”, avalia Rocha, que é enfático ao afirmar que a negociação da base de Alcântara coloca a soberania do país sob perigo.
“O maior risco que vejo nisso é uma perda de autonomia política e ideológica do país para desenvolver uma série de tecnologias que seriam de interesse nacional. São tecnologias que nos permitiriam escolher parceiros estratégicos, parceiros para desenvolver toda uma gama de ciência e tecnologias, que poderiam colocar o Brasil em um patamar distinto do que ele está hoje na comunidade científica mundial”, complementa.
Na opinião do docente, o acordo “governo a governo”, sem a opinião de pesquisadores e especialistas da área, não foi feito de forma transparente.
Confira na íntegra entrevista com Flávio Rocha ao Brasil de Fato sobre as consequências da negociação da Base de Alcântara.
Brasil de Fato: O que esse novo acordo significa, na prática?
Flávio Rocha: Precisamos entender ainda, verificar e ler os documentos. Até agora, o que está sendo veiculado na imprensa são declarações. Declarações do embaixador brasileiro em Washington, declarações das partes brasileiras ligadas especialmente a uma pequena parte das comunidades científicas que têm interesse em reativar o programa espacial. Precisamos ter mais detalhes, mas, no curto prazo, os Estados Unidos vão ter acesso ao melhor local para se instalar veículos lançadores de satélites do mundo. É um local cuja geografia ajuda muito.
O custo para se lançar satélites da Base de Alcântara vai ser muito menor que se lançar na Guiana Francesa, que é logo ali perto. Isso dá uma vantagem comercial muito grande para os Estados Unidos, especialmente no momento em que há uma competição tecnológica muito séria e muito forte com a China. Essa competição está se espraiando para o setor aeroespacial.
Para os Estados Unidos, será um excelente negócio. O problema é se isso vai ser um negócio tão excelente assim para o Brasil. Quando fazem acordo com parceiros que possuem tecnologias inferiores, os EUA não costumam ser cooperativos como quando fazem com potências que possuem capacidade industrial e tecnológica equivalente – como é o caso dos europeus e dos japoneses, para citar dois exemplos.
A grande dúvida que resta aqui é: o que o Brasil vai ganhar, especificamente, em termos de avanço da sua tecnologia aeroespacial e avanço comercial derivado dessa tecnologia, em um contexto onde há o acirramento de uma competição geopolítica internacional, em um contexto em que há o acirramento de uma competição econômica em torno do uso do espaço?
Os Estados Unidos vão ter grandes vontades. Resta saber o que vai acontecer com o Brasil. Até agora, não está claro.
Quais forças se articularam para que esse novo acordo acontecesse, depois de tantos anos? Por que ele foi aprovado com apenas três meses de governo Bolsonaro?
Há um desejo por esse acordo por parte dos Estados Unidos e de alguns grupos do Brasil há muito tempo, e isso nunca foi para frente por algumas razões. Uma delas é que nos governos Lula e Dilma não se considerou que os Estados Unidos seriam um parceiro confiável, no sentido de poder fazer um acordo de igual para igual. O governo Bolsonaro tem uma pauta ultra-neoliberalizante do ponto de vista da economia, ou seja, busca conseguir recursos fora da base do governo da maneira mais obsequiosa possível. E também se tem uma busca – até meio inacreditável – por um alinhamento geopolítico a todo custo, a curto prazo, com os Estados Unidos.
No governo Bolsonaro, o que se tem é o seguinte: a busca por esse alinhamento, principalmente, mas também a questão econômica, pesando na feitura desse acordo-relâmpago com os Estados Unidos. Não está se pesando, por exemplo, se seria interessante procurar outros parceiros ou fazer uma proposta de acordo de flexibilizar para que o Brasil tivesse a possibilidade de trazer outros parceiros também.
Basicamente, há a confluência desses dois interesses: o interesse econômico ultra-neoliberalizante e a pauta de alinhamento geopolítico irrestrito com os EUA a curto prazo. Resta saber, nos próximos cinco ou dez anos, se esse alinhamento irrestrito vai continuar.
A experiência que temos na história do Brasil é que os períodos de alinhamento irrestrito com os Estados Unidos nunca foram lucrativos para o país. Os governos que fizeram isso foram rapidamente sucedidos por governos que trataram de priorizar o interesse nacional e tirar o alinhamento da ordem do dia. Um exemplo que posso dar é o do próprio regime militar. Os militares fizeram, em um primeiro momento, um alinhamento muito próximo dos EUA, e o próprio regime militar com o governo Geisel tratou de se afastar para priorizar outros interesses do Brasil.
Qual os impactos da presença estadunidense no Brasil?
O risco mais imediato é que haverá uma base na qual os Estados Unidos lançaram satélites, e não fica claro qual o tipo de satélites que lançarão. Provavelmente, serão satélites de telecomunicação, tecnologia, mas não saberemos se vão lançar satélites especificamente destinados a comunicações militares, espionagens, enfim.
Fizemos um acordo de venda da Embraer para a Boeing americana, e a Boeing está fortemente integrada ao programa aeroespacial dos Estados Unidos. O maior risco que vejo nisso é uma perda de autonomia política e ideológica do país para desenvolver uma série de tecnologias que seriam de interesse nacional. Essas tecnologias nos permitiriam escolher parceiros estratégicos, parceiros para desenvolver toda uma gama de ciência e tecnologias, que poderiam colocar o Brasil em um patamar distinto do que ele tem hoje na comunidade científica mundial.
O risco maior que vejo, a curto prazo, é esse alinhamento prejudicar nosso desenvolvimento autônomo. Não digo autônomo no sentido de se desenvolver sozinho, porque na ciência atual isso não existe, mas uma autonomia em que o Brasil possa dizer como quer desenvolver, como quer escolher isso, como quer aplicar esse desenvolvimento científico.
Quando se faz um tipo de parceria dessas com os Estados Unidos, um coisa certa em qualquer acordo do gênero é que existem vetos da cessão dessa tecnologia, da comercialização, para os países que são desafetos dos EUA. Para fazer esse acordo, vamos ter que adotar, pelo menos parcialmente, uma visão geopolítica deles que não necessariamente é do nosso interesse.
Então, o Brasil está abrindo mão de um setor estratégico e coloca sua soberania em risco?
Sim, sem dúvida. Tentamos nos últimos dez, quinze anos, instalar uma base para construir uma indústria aeroespacial no país, uma indústria de ponta. São vários cursos de engenharia aeronáutica e aeroespacial no Brasil que foram construídos com essa lógica. Esses cursos só têm sentido de existir se há esperança de fornecer uma indústria nesse setor.
Com essa parceria com os Estados Unidos, junto com a venda da Embraer, o Brasil vai ficar relegado a desenvolver tecnologias que não são de ponta, mas sim, de apoio e de suporte. Do ponto de vista da soberania, o Brasil vai ficar, realmente, em uma posição muito submissa. De continuar a desenvolver não uma tecnologia de ponta, mas tecnologias acessórias do seu plano espacial.
Em termos geopolíticos, a estratégia dos Estados Unidos parece ser a de impedir o surgimento de novas potências.
Sem dúvidas. Os Estados Unidos têm uma política externa que, nesse ponto, é muito clara. Eles têm que impedir a existência, o desenvolvimento de potências geopolíticas rivais que, de alguma maneira, não estejam de acordo com seus interesses. Criando uma amarração tecnológica dessas, se cria um obstáculo para o Brasil fazer um tipo de política externa de cunho mais nacionalista, para se tornar uma potência regional.
O Brasil já é uma potência e, nos últimos anos, desenvolveu uma visão muito independente dos interesses dos Estados Unidos. Nesse governo, especificamente, estamos vendo uma reversão disso. Esse acordo tem a lógica de colaborar com essa reversão. O Brasil não se concebe nesse governo como um país que não esteja alinhado sob a liderança dos EUA.
O que o governo Bolsonaro tem feito é uma coisa que está surpreendendo todo mundo. As coisas estão indo com rapidez, como se o governo fosse acabar amanhã. Falta um debate mais amplo. Não ouvimos falar que a comunidade científica brasileira pode opinar sobre isso.
Foi um acordo governo a governo, feito de uma maneira não transparente. Geralmente, quando esses acordos são feitos de maneira não transparente, geram dúvidas. Quais são as salvaguardas disso? Qual é o plano B se esse acordo der errado? Se amanhã o governo americano estabelecer vetos a usos de recursos e tecnologias, como o Brasil vai reagir? Realmente, é uma coisa que vai amarrar o desenvolvimento brasileiro.
Não vamos conseguir, nos marcos do capitalismo, desenvolvermos uma indústria aeroespacial que faça uma concorrência a indústria aeroespacial americana. E é uma pena, porque geograficamente estamos no melhor local do mundo para fazer lançamento desse tipo de satélite.
Podemos caracterizar essa política como “entreguista”?
Eu vejo dessa forma. É lógico que há um limite estrutural. A própria estrutura do Brasil não deixa fazer isso em 100% dos casos. Mas, nesse caso específico, do setor aeroespacial, vejo uma política de entrega do desenvolvimento, da elaboração de políticas públicas. Está se alienando essa possibilidade em prol de uma colaboração com uma potência estrangeira.
Os Estados Unidos são o país que mais tem bases ao redor do mundo. Essa localização de Alcântara, no Nordeste brasileiro, em frente à África Ocidental, é ideal para um projeto de dominação.
Existe uma competição geopolítica muito clara. Os últimos documentos do governo Trump mostram taxativamente que é uma política de Estado considerar a China e a Rússia como potências rivais, que querem minar a influência dos Estados Unidos no mundo. Então, dentro dessa lógica, eles concebem o continente americano como uma área de domínio exclusivo, área de sua preponderância exclusiva.
Ao posicionamento em Alcântara é fazer de uma maneira rápida, antes que algum outro governo tenha a ideia de fazer algum tipo de acordo parecido, como por exemplo, a China.
Infelizmente, em curto prazo é isso. Ainda vamos ouvir, inclusive de fontes governamentais, reclamação sobre o acesso de cientistas brasileiros aos dados de pesquisa, dos lançamentos que têm em Alcântara.
Os Estados Unidos podem até fazer um acordo de igual PARA igual com países que estão no mesmo nível tecnológico. Mas com um país que tem uma indústria aeroespacial que não decola por vários motivos, que tem um governo que não se preocupa em fortalecer a indústria, com esse tipo de país, os Estados Unidos vão fazer um acordo no qual eles serão a parte forte e vão impor sua visão em detrimento da nossa.
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