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América do Sul sob a mira dos EUA

24 de junho de 2008

Nos últimos dias, uma avalanche de notícias sobre o poder naval dos norte-americanos tomou conta das capas de revistas brasileiras. Só que, desta vez, os protagonistas são os países da América Latina, em especial o Brasil. A revista Carta Capital abordou timidamente, na edição de 21 de maio, o reaparecimento da IV Frota Naval dos Estados Unidos, que foi designada para gerir o Atlântico Sul, com poderes para combater o narcotráfico e o “terrorismo”. Já a revista mensal Le Monde Diplomatique Brasil, edição do mês de junho, dedicou uma extensa e elaborada reportagem sobre a reativação da IV Frota, inclusive com fotos e detalhes sobre os porta aviões que estarão comandando a frota. Outra publicação brasileira, a revista Caros Amigos registrou na última edição um texto do comandante cubano Fidel Castro com especificações sobre o poderio militar da frota estadunidense. O Le Monde enfatiza alguns dos interesses estratégicos que teriam motivado os EUA a acelerar as medidas militares na América do Sul, entre eles as recentes descobertas de grandes jazidas de petróleo no Brasil, os recursos naturais da floresta Amazônica e também a ascensão de presidentes de esquerda ao poder na região, como Hugo Chávez, na Venezuela, Rafael Correa, no Equador, Evo Morales, na Bolívia, Lula, no Brasil, e o recém-eleito Fernando Lugo, no Paraguai. Algumas publicações apontam que a criação da União das Nações Sul Americanas (Unasul), em maio passado, interferiu diretamente na decisão dos Estados Unidos de reativar a IV Frota. Ao receberem a notícia de que a frota está ativa, as autoridades brasileiras se manifestaram energicamente através do ministro da Defesa, que declarou que o porta-aviões não entra em águas brasileiras sem autorização. Um desfecho para esse quebra-cabeça geopolítico parece distante. Novamente, o governo norte-americano volta o olhar para o Sul da América. A professora e especialista em geopolítica Helenice Almeida Santos concedeu entrevista ao Portal Sinpro Minas sobre essas ações militares no continente. Com um olhar crítico e fundamentado, ela abordou algumas possíveis conseqüências geopolíticas na região em face da reativação da IV Frota Naval dos EUA.Confira a entrevista na íntegra.Portal Sinpro – A IV Frota ameaça a soberania dos países da América Latina?Helenice – Toda operação militar, política ou econômica dos EUA no continente é uma ameaça à soberania dos países latinos. Sempre que se sentem ameaçados, eles passam por cima de tratados internacionais e usam argumentos como o “direito de intervir” e o “dever de ingerência” a título de defesa dos direitos humanos, da defesa do meio ambiente, guerra contra o narcotráfico, contra o terrorismo, crimes humanitários etc. Baseados no seu poderio militar, se revestem do poder de polícia e atuam como se fossem. Desde a Doutrina Monroe (1823) – “América para os americanos” – que a soberania dos países latinos se encontra ameaçada. O único país que lutou bravamente contra essa situação e que ainda resiste é Cuba. Os Estados Unidos, durante muito tempo, não tiveram que se preocupar com a América Latina, isolaram Cuba e estabeleceram em quase todos os demais países relações favoráveis com grupos dominantes locais e com governos que chegaram ao poder com todo o seu apoio, favorecendo assim a sua ingerência e o desrespeito à soberania dessas nações. Por isso, ele pôde voltar o seu foco para outras questões, como a corrida armamentista. O fim dos regimes militares na América Latina fortaleceu a democracia e o processo eleitoral. Em países onde a grande maioria é pobre e sempre esteve excluída da vida política do país, essa mudança resultou no grande processo de transição política que estamos presenciando aqui. A subida ao poder de governos de esquerda que começaram a criticar e combater os efeitos das políticas neoliberais, a implementar políticas sociais, a defender os interesses internos em detrimento dos interesses do grande capital mudou o cenário geopolítico do continente. O aumento da consciência de que unidos os países latinos podem melhor resolver os seus problemas e discutir estratégias de desenvolvimento, cooperação e segurança para a região culminou na criação da UNASUL e sepultou, a meu ver, o projeto de criação da ALCA, que atendia apenas aos interesses dos EUA.Além da transição política que mostra um afastamento claro da América Latina da posição dos EUA, há também as questões ligadas às grandes e recentes descobertas de petróleo no Brasil (Atlântico-Sul, área de atuação da IV Frota), no momento em que os preços disparam no mercado internacional; que a Venezuela mantém nacionalizada a maior parte da sua produção (não se deve esquecer que um terço do petróleo que chega aos Estados Unidos provém da Venezuela, México e Equador, o que transforma a região num espaço estratégico para a manutenção da sua supremacia econômica e militar); a crise econômica interna; o aumento no preço dos alimentos; a perda de áreas estratégicas de influência com o fim das bases militares no Panamá e no Equador (a partir de 2009); o agravamento dos problemas ambientais que dirigem o foco das atenções para a Amazônia etc. Claro que os Estados Unidos não deixariam isso de graça. Não seria muita coincidência os EUA anunciarem a reativação da IV Frota exatamente após a criação da UNASUL e da proposta de criação do Conselho Sul-Americano de Defesa?Portal Sinpro – Qual grau de interferência os norte-americanos pretendem na região?Helenice – Total e em todas as áreas: recursos naturais, defesa, políticas etc. Os Estados Unidos não fazem pequenas investidas. No entanto, não têm maiores aliados aqui, além da Colômbia, que pode aumentar seu isolamento se não participar dos processos integracionistas da região. Uma transição política na Colômbia também pode mudar esse cenário, pois Uribe não ficará no poder para sempre. “É um recado à Venezuela e ao resto da região”, afirma o comandante da Revolução Cubana, Fidel Castro, em um artigo recente, intitulado “Resposta hemisférica ianque: a IV Frota de Intervenção”. Neste artigo, Fidel chama a atenção para o fato de que “nenhum país no mundo possui um navio similar a este, todos equipados com sofisticadas armas nucleares, que podem se aproximar a poucas milhas de qualquer de nossos países. O próximo porta-aviões, o USS Gerald Ford, será de novo tipo: tecnologia Stealth invisível aos radares e armas eletromagnéticas. A principal construtora de um tipo ou outro é a Northrop Grumman, cujo atual presidente também faz parte da Junta Diretiva da petroleira dos Estados Unidos Chevron-Texaco. O custo do último Nimitz foi de seis bilhões de dólares, sem incluir aviões, projéteis e gastos de operação, que podem aumentar também para bilhões. Parece ficção científica. Com esse dinheiro poderiam ter salvo a vida de milhões de crianças”. Portal Sinpro – Qual é a maior preocupação da Casa Branca em relação ao Brasil?Helenice – O tamanho do Brasil e seu imenso espaço agricultável, com capacidade para abastecer grande parte do mercado internacional com biocombustíveis e com alimentos; a Amazônia e sua biodiversidade; o potencial dos recursos hídricos; as descobertas recentes de petróleo na Zona Econômica Exclusiva, o que tem feito os EUA levantarem a questão sobre o direito de posse dessas reservas pelo Brasil; um maior alinhamento com os países da América do Sul (UNASUL) e um visível afastamento da política de George Bush; o crescimento econômico e a redução da dependência externa; o aumento da autonomia, entre outros fatores.Portal Sinpro – A relação, de certa maneira amigável, entre os EUA e a Colômbia pode ter contribuído para a decisão de reativar a frota, com o intuito de combater as FARC?Helenice – Sempre haverá um pretexto. Afinal, para uma operação militar desse porte é preciso que se tenha uma justificativa. As FARC constituem um problema colombiano e que, poderia, no máximo, se estender aos países vizinhos da América do Sul, portanto, problema nosso. Esses países têm que se mobilizar no sentido de encontrar uma alternativa diferente ao extermínio dos guerrilheiros, como acontece atualmente com o Plano Colômbia. A existência do movimento de resistência é legítima e a falta de vê-los como um movimento social e político criou um clima de violência entre as FARC e o governo, que interrompeu o diálogo e levou a uma situação de combate.O consumo e o tráfico de drogas nas fronteiras e dentro dos EUA são problemas deles. Por que ao invés de pressionar os países produtores e achar que o uso da força é a melhor alternativa para combater o narcotráfico, eles não destinam essas operações para eles próprios? Como tomam decisões em nome dos países vizinhos e não atacam os problemas internos de frente? Muitos políticos e altos executivos estão envolvidos com o tráfico internacional de drogas. Os Estados Unidos consomem a maior parte das drogas produzidas no mundo. Portanto, esse é o maior estímulo para os países produtores: o potencial de mercado dos EUA. Então, os Estados Unidos acusam os outros de estimular o consumo de drogas? Não seria o contrário? Para esses países essa é uma grande fonte de renda.O argumento de Uribe para não apoiar a criação do Conselho Sul-Americano de Defesa foi que, antes de qualquer coisa, as FARC precisam ser reconhecidas enquanto grupo terrorista, o que dá sentido à tentativa de Hugo Chávez de transformar as FARC em grupo político desarmado (no médio prazo).  Os diálogos entre ele e Raúl Reyes para a libertação paulatina de reféns da guerrilha colombiana tinham esse objetivo. Para ele, a situação política na América Latina favorece as iniciativas de governos populares e que, caso haja um desfecho democrático para as FARC, o império americano perderá seu grande álibi para incursões militares na região. Para impedir que esse projeto tivesse continuidade, a Colômbia, com ajuda da inteligência norte-americana, assassinou o número dois das FARC em território equatoriano, o que acabou gerando a recente crise, amplamente divulgada pela mídia.Portal Sinpro – Quais atitudes devem ser tomadas pelos países latino-americanos em relação à agressiva decisão norte-americana?Helenice – A América do Sul já está no caminho certo. Com Chávez, Rafael Corrêa, Evo Morales e, mais recentemente, Lula, que reassumiu sua liderança e posicionamento no continente, e Fernando Lugo, no Paraguai, temos lideranças suficientes para lutarmos por nossa soberania. O fim do conflito Leste-Oeste parece ter fortalecido o conflito Norte-Sul, onde o Sul agora é visto como um espaço estratégico em função dos enormes recursos naturais ainda existentes e cada vez mais escassos no Norte desenvolvido. Está na hora de mostrar aos países desenvolvidos que somos capazes de resolver os nossos próprios problemas e administrar os nossos recursos. Precisamos criar e fortalecer a identidade latino-americana, pois quando se fala de americanos, a referência é feita aos estadunidenses e não a todos os americanos.

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