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Análise| A questão do poder na Venezuela: foco no processo, não na pessoa

24 de julho de 2017

O que está em jogo é o poder do Estado e, consequentemente, o futuro de milhões que não abrem mão do poder popular

Os meios de comunicação tradicionais pintam o presidente Maduro como o grande causador dos problemas na Venezuela. Não por acaso, o discurso que há alguns anos cabia a Cuba, então inimiga número um do chamado “mundo moderno”, foi deslocado para esse novo inimigo. Da mesma forma do feito com Cuba, agora a Venezuela torna-se alvo da pretensa falta de liberdade individual e desrespeito às cláusulas democráticas, tanto pelo discurso oposicionista que vigora no senso comum, quanto por algumas vozes progressistas. Mudam-se os alvos, mantêm-se o enredo!

Nada de novo em um discurso cômodo, que nos mantêm na zona de conforto da crítica, idealizado e sem contradições dos processos políticos na América Latina, ou seja, um discurso crítico de processos que jamais existirão. O processo político real e pouco linear, conhecido por Revolução Bolivariana, sofre todas as intempéries das claras intervenções políticas externas, da sua disputa interna, da inflamada conjuntura mundial recente e da condução na sua própria gestão. Não há fórmula mágica ou crítica abrangente o suficiente capaz de trazer diagnósticos límpidos, caso sejam ignorados esses fatores. O que se depreende de tudo isso, é a necessidade da manutenção do processo revolucionário em razão das mudanças paradigmáticas populares por ele trazidas na vida das pessoas, do povo que vive do trabalho.

O atual presidente, democraticamente eleito na Venezuela, exerce o segundo mandato e enfrenta uma oposição ferrenha não só em seu país, mas em outros locais do mundo. Mas, afinal de contas, qual o interesse de algumas das principais potências econômicas do mundo na desestabilização de um país mediano, localizado entre o Caribe e a América do Sul, dentre quase 200 países no planeta?

Considerações sobre a “crise” na Venezuela

A Venezuela é um dos países com a maior reserva petrolífera do planeta e essa não pode ser considerada uma informação secundária em um mundo energeticamente petrodependente, mas além deste recurso, o país possui grandes reservas comprovadas de outros minerais estratégicos como: ouro, bauxita, columbita-tantalita e cobre.

Após a entrada de Hugo Chávez na presidência, o Estado venezuelano modificou a gestão e o direcionamento dos faturamentos da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.), visto que os royalties do petróleo passaram a ser investidos desde a área da saúde à habitação em benefício do povo venezuelano e não mais um privilégio restrito apenas a setores ligados ao grande capital privado.

Diante do fato descrito acima, não resta dúvida de que não são novos os anúncios tão evidenciados e disseminados sobre a existência de uma longa “crise” na República Bolivariana da Venezuela. Ao indivíduo mais dotado de historicidade, o início da “crise” pareceria coincidir com a vitória eleitoral de Hugo Chávez em 1998, mas que teria na oposição às Leis Habilitantes de 2001 seu marco fundamental. Todavia, num exemplo de completa “amnésia”, apagadas todas as referências pretéritas, para os meios de comunicação e a oposição ao governo Maduro, a conjuntura pela qual atravessa a Venezuela seria simples resultado da inabilidade do atual presidente e dos chavistas em conduzir a vida política, social e econômica do país.

Dessa forma, as explicações para uma crise passam pela alta inflacionária, pela falta de produtos básicos nos supermercados e ganhando contornos de “crise humanitária” somada a uma repressão violenta aos setores oposicionistas.

Não é novidade para aqueles que têm o apreço pelos livros ou pelo simples conhecimento da história, que ações golpistas e desestabilizadoras fazem parte da trajetória política dos países da América Latina que ousam afrouxar as amarras da dependência, entre eles a Venezuela. O golpe para a tentativa de retirar o presidente Hugo Chávez em 2002, talvez tenha sido o mais escancarado até então.

Vários outros episódios desestabilizadores se sucederam: a tentativa de fragilização da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.) por seu corpo diretivo (2003); o Plan Guarimba cuja chamada à desobediência civil tinha como tática o fechamento violento de ruas e avenidas em bairros de alta renda de Caracas, como também o uso de coquetéis molotov, bazucas e bombas caseiras (2004); a sabotagem para gerar falta de produtos básicos não perecíveis e formação de um tímido mercado negro de papel higiênico, creme dental, café e farinha de milho, após a declaração do “Socialismo do Século XXI” (2005). Todas são manifestações desesperadas de uma oposição incapaz de vencer pela via eleitoral e de construir um consenso ao redor de seu “programa político”.

A intensificação da violência tática por parte da oposição ocorreu com o anúncio do adoecimento do ex-presidente Hugo Chávez em 2011 e alcançou níveis alarmantes com seu falecimento em março de 2013. A partir de então foram postas em funcionamento duas táticas complementares: a guerra econômica) e a guarimba.

A guerra econômica, aprofundada desde meados de 2012, se estrutura pelo recurso ao açambarcamento, o estoque de mercadorias em grande quantidade com intuito de provocar a sua escassez, como também o recurso ao mercado paralelo a preços exorbitantes, estimulando a atividade ilegal dos bachaqueros; a indução da inflação pelo ataque à moeda, cujos principais agentes especuladores são a casa de câmbio Dolar Today em Miami e as casas de câmbio situadas na cidade colombiana de Cucutá; o boicote ao fornecimento de produtos e insumos industriais para a produção de determinados bens essenciais, como também médico-hospitalares pelas empresas monopolistas nacionais e estrangeiras; e finalmente, o bloqueio financeiro internacional, evidente pela manipulação do risco país Venezuelano, o mais alto do mundo, superando a “falida” Grécia e a “conflitiva” Síria. Tal tática visava minar o poder de compra dos salários, reduzir a produtividade interna e reduzir a confiança na eficiência da intervenção estatal na economia.

Um dos atos chocantes mais recentes, incitados pela oposição, foi a destruição de um depósito da rede estatal de abastecimento Mercal, onde foram queimadas 50 toneladas de alimentos que seriam distribuídos em comunidades pobres do Estado de Anzoátegui, como destacou em artigo o professor Igor Fuser. Ademais, a sabotagem econômica é intensificada, visto que a maior parte da produção ou distribuição de produtos está concentrada nas mãos do empresariado, em regra, alinhado com a oposição do governo, embora difundam a culpa como sendo exclusivamente em razão de uma má gestão econômica do governo Maduro. A fim de combater à escassez, foram criados os Comitês Locais de Abastecimento e Produção, com o intuito de fornecer alimentos subsidiados para grande parte da população, além da manutenção dos programas sociais do governo.

A segunda tática, a guarimba consiste na formação de barricadas em avenidas, queima de pneus e lixo, cabos de aço atravessando as ruas à altura do pescoço, ações violentas de grupos portando armas de fogo e caseiras. São formas de instigar a ação mais repressiva pelo governo, de gerar o medo entre a população. Cabe destacar que não são ações menores de grupos aventureiros, mas sim convocadas por figuras expoentes da Mesa de la Unidad Democrática (MUD) da oposição como o ex-candidato a presidente Henrique Caprilles, o ex-prefeito de Chacao-Caracas Leopoldo López, a ex-deputada da Assembleia Nacional Maria Corina, o atual presidente da Câmara dos Deputados Henry Ramos Allup entre outros.

Essas ações sempre acompanhadas por campanhas em defesa da liberdade de imprensa e contra as violações dos direitos humanos, as quais exigiam a renúncia do presidente. Essa combinação das táticas complementares de sabotagem, nunca foram denunciadas pelos mesmos meios de comunicação opositores ao governo e à revolução, o que gera efeitos psicológicos e desestabilizadores, criando um clima de ingovernabilidade.

A Encruzilhada Jurídica e a Questão do Poder

A Constituição Venezuelana de 1999 é um marco na história recente no país, pois partiu efetivamente do imaginário popular de empoderamento e participação na condução da vida política, reflete, portanto o pacto realizado em um momento político que garantiu outra forma política como parte do processo de ruptura capaz de gestar um projeto popular. Todavia, os embates com uma oposição agressiva desde 2001, num processo dialético de aprofundamento das conquistas populares, encaminharam a decisão de transitar ao socialismo em 2005, deixando claras as rupturas provocadas e estimuladas pela nova Carta Magna.

A partir do momento que se reconhece o avanço de um processo revolucionário que busca extrapolar paradigmas formais do liberalismo, a estrutura liberal do Estado, em alguma situação e momento histórico, apresentará limites claros que devem ser enfrentados por se tratar de uma Revolução que aponta para um horizonte socialista. A Constituição, por mais que seja uma garantia moderna na defesa de direitos e apontamento de deveres, não deve ser vista como uma “camisa de força” incapaz de permitir a construção de um novo pacto social firmado no bojo de um processo revolucionário, mesmo que se faço uso da Constituição para avançar no próprio processo.

Na crítica realizada ao processo venezuelano, simplesmente recorrer a análises formais do direito como método de distanciamento do próprio processo, só valoriza a opção por uma crítica que reforça os pilares liberais alçado a pedestais, nem sempre libertários. Ao que parece, somente a normalidade dos procedimentos liberais são aceitos como “naturais”, afastar-se disso seria uma anomalia inaceitável aos padrões estabelecidos historicamente, mesmo que esses padrões não se interessem pela maioria do povo explorado e marginalizado ao longo desse processo.

Não se trata de questão de incoerência ou mera conveniência na defesa constitucional por um lado e na apresentação de seus limites diante da conjuntura política por outro. O que está em jogo é o poder do Estado e, consequentemente, o futuro de milhões de pessoas que não abrem mão do poder popular, mesmo discordando eventualmente de atos políticos e de gestão das autoridades eleitas, que estão à frente do projeto político atual.

Alguns setores críticos do campo progressista trazem abordagens importantes, porém temerosas, uma vez que o grupo, que de fato tem condições reais de assumir o poder do Estado, caso o governo seja derrotado, traz um projeto reacionário, antipopular e sem ter receios de afirmar o termo, muito além do chavão, claramente imperialista. Ao abordar como os grandes problemas da Venezuela, o não respeito a separação de poderes, (que ainda sim, pode ser questionado), ou a dependência relacionada ao rentismo decorrente do petróleo (que consiste, de fato, em situação crítica estrutural da economia) ao invés de denunciar a contra-revolução em andamento que, além da Venezuela, atinge boa parte dos países da América Latina, como o golpe que atingiu o Brasil, é no mínimo controverso nesse momento. Para enfatizar essa questão, basta fazer uma simples pergunta: Alguém acredita que a oposição venezuelana estaria disposta a resolver esses problemas caso alcançassem o poder do Estado? Responder essa questão, talvez facilite elencar prioridades, sem se esquivar dos problemas no horizonte.

Ao rememorar o centenário de uma Revolução vitoriosa, a Russa de 1917, cabe destacar o elemento fundamental, de acordo com o seu maior líder, para se alcançar o triunfo: a questão do Poder.

Lenin, em trecho do texto Uma das Questões Fundamentais da Revolução, escrito em setembro de 1917, dizia que “a questão mais importante de qualquer revolução é sem dúvida a questão do poder do Estado. Nas mãos de que classe está o poder (…) Não é possível eludir nem afastar a questão do poder, pois esta é precisamente a questão fundamental que determina tudo no desenvolvimento da revolução, na sua política interna e externa”.

Os grupos radicais opositores ao governo Maduro há muito passaram os limites em suas ações não divulgadas devidamente pelos meios de comunicação na busca pelo poder do Estado. Não cessam as ações verdadeiramente terroristas como: a queima de pessoas vivas; a realização, com o uso de helicóptero, para o disparo de tiros e granadas contra a sede do Supremo Tribunal de Justiça, em Caracas; o ataque a outros prédios públicos e as guarnições militares; tudo no intuito de despolitizar o cotidiano e intensificar a instabilidade no país.

Novos instrumentos devem ser forjados para responder aos desafios apresentados pela conjuntura. Nem sempre darão as respostas que se espera, mas constituem apostas necessárias, pois caso não realizadas, a única certeza serão as derrotas iminentes a todo um povo, caso o projeto neoliberal da oposição retorne ao Poder do Estado.

Muito certamente a intensificação dos ataques violentos oposicionistas estejam relacionados ao receio que possuem do processo constituinte que se faz presente no horizonte. Porém, observadas quase duas décadas de persistente e desesperada ação contrarrevolucionária, agora intensificada pelas táticas da guerra econômica e guarimbas: há muito tempo a oposição não confia nas soluções liberais burguesas como via de retorno à condução da vida política do país. O que torna ainda mais importante a nova Constituinte convocada por Nicolás Maduro, dado seu potencial de rearticular as massas trabalhadoras em torno do processo bolivariano, processo revolucionário esse, que sofre algum desgaste com a figura de Maduro. Embora, não reste dúvida de que o processo é muito maior do que a pessoa e, por esse motivo, deve ser defendido para que avance para um novo nível de radicalidade e articulação em torno de um projeto popular para a Venezuela.

Raphael Lana Seabra e Gladstone Leonel Júnior | Edição: Vanessa Martina Silva | Brasil de Fato

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