O papel docente colocado em cheque na EaD: o que há de tão especial na modalidade a distância?
Ângela Maria da Silva Gomes
Junho 2017
O ensino a distância foi introduzido no Brasil com os mais diversos argumentos: o da dimensão territorial, descentralização do ensino, acessibilidade à educação em regiões distantes, entre outros. A Educação a Distância (EaD) se disseminou no Brasil somente nas últimas duas décadas. Talvez, por esse crescimento ainda ser recente, os programas em EaD têm suscitado diversas controvérsias e temores entre aqueles sujeitos que se dedicam ao trabalho e reflexão sobre o campo dos direitos trabalhistas.
Dentre os temas em debate atualmente, o impacto das atividades de EAD sobre o trabalho docente é um dos que mais têm merecido atenção. Especialmente quanto aos riscos trabalhistas que os programas em EaD envolvem: o aumento da carga de trabalho dos docentes, as novas exigências impostas pelo uso das tecnologias digitais, o “empobrecimento” da mediação pedagógica por meio da atuação da tutoria, precarização do trabalho em termos de condições de trabalho, violação de direitos autorais, entre outros. Alguns educadores mais críticos chegam a temer pelo futuro da profissão docente, indicando a possibilidade de redução das funções do professor por meio de sua substituição pelas tecnologias de informação e comunicação (https://www.ufrgs.br/soft-livre-edu/trabalho-docente-na-educacao-a-distancia/).
É claro que há a possibilidade de uma adaptação em materiais mais flexíveis, como hipertextos e videoaulas (em comparação a outros materiais mais permanentes, por exemplo, livros impressos e audiovisuais mais elaborados), e, além disso, também é preciso reconhecer os limites impostos pela produção desses materiais, que, lamentavelmente, não permitem o seu constante repensar e refazer.
Para além dos argumentos governamentais e empresariais capitalistas, enquanto sindicalistas, podemos afirmar que o fenômeno de disseminação da Educação a Distância trouxe impactos sobre o trabalho docente, principalmente no que se refere às condições de seu exercício e nas suas relações com o tempo e o espaço de trabalho. Dessa forma, a premissa da qual se parte é que a Educação a Distância tem promovido uma crescente precarização no trabalho docente, tendo em vista a sobrecarga de atividades que ela traz ao professor, associada à falta de regulamentação das relações trabalhistas em ambientes virtuais e domésticos.
“O professor, ao aceitar trabalhar na modalidade a distância, enfrenta uma série de desafios acrescidos dos que já enfrenta no ensino tradicional. Ele arrisca olhar o novo, em uma educação mediada e dependente do uso de Tecnologias da Informação”. Em Aberto, Brasília, v. 23, n. 84, p. 79-97, nov. 2010 82 e Comunicação (TIC), mas tem como referência e prática a realidade do ensino presencial, em que ele está relativamente à vontade, pois ali tem parâmetros e história. Suas referências foram construídas desde a sua experiência como aluno, depois, nos cursos de formação de professores e, principalmente, na sua prática docente no contexto escolar. É com essa bagagem que ele é desafiado a olhar o novo.
Acrescenta-se ainda que, a cada semestre, muitas escolas privadas compram programas novos que implicam em novos tempos de aprendizados, e novas ameaças de demissões pelo fato de os professores não terem feito os lançamentos on –line “nos tempos solicitados” .
Por outro lado entendemos que essa é uma bagagem que deve mesmo ser trazida, para evitar correr o risco de pensar que a EaD é uma outra coisa que não a própria educação. Portanto, é necessário primeiro reconhecer que este é o ponto de partida do professor, para compreender suas determinações e tentar identificar, então, as possibilidades de outras e diferentes leituras desse contexto.
No que concerne ao professor, as diretrizes financeiras determinam também o papel docente na EaD. A docência, distribuída em diferentes papéis, como o de professor e o de tutor (a distância e presencial), está definida em resoluções que enquadram esses profissionais como bolsistas que sequer têm direito a uma declaração do trabalho que realizam como professores, devido à possível consolidação de vínculos empregatícios não desejados, como é o caso de professores de idiomas. Tal precarização do trabalho docente se desdobra, na prática, entre outras coisas, por meio da baixa remuneração, que exclui profissionais qualificados, e da falta de reconhecimento profissional. Complementarmente, configura-se a implantação de uma política pública nacional, que define o papel dos tutores como não docentes (Em Aberto, Brasília, v. 23, n. 84, p. 79-97, nov. 2010 80).
A conclusão é que essa política padroniza os projetos de cursos pela EaD e não acolhe propostas com outras concepções, eliminando, assim, a possibilidade de reconhecimento do trabalho profissional do professor na modalidade a distância.
São diversos desafios no caso da EAD no setor privado:
O número excessivo de alunos por professor, em alguns casos chegam a 1000 alunos para cada professor;
Ausência de horário de trabalho: as orientações ao aluno funcionam como banco 24 horas, uma vez que até de madrugada o professor pode receber demandas. O marketing do setor privado de ensino para atrair os alunos é que os mesmos terão atendimento e orientação 24 horas.
Mesmo que o marketing do EAD seja com discursos pseudo libertários das diversas pedagogias emancipatórias (pedagogia da autonomia, educação libertária, educação como prática da liberdade), na prática a rede de ensino privada está rompendo com a educação enquanto processo de socialização e humanização.
O primeiro desafio surge já na preparação do curso. A EaD quebra as antigas estruturas de tempo e espaço da docência. Não apenas no afastamento físico do professor e do aluno, que, em princípio, deve ser dirimido pelo uso de recursos tecnológicos, mas também no afastamento temporal entre planejamento e execução do processo de ensino e de aprendizagem, isto é, do pensar e do fazer da prática docente.
Modelo de aulas blended (semipresencias): nessas, os alunos pagam por 4 horas de aula e o professor só recebe 2 horas, sob o argumento de que parte do material de aula já está on-line.
Aulas invertidas e direitos invertidos
Outro detalhe é que no ensino privado não há mais as separações entre conteudistas e tutores. Com o pressuposto que a produção de material didático faz parte do trabalho do professor que leciona aulas presenciais. Assim, na nova modalidade, a produção de material didático e produção de aulas não presenciais e publicação das mesmas serão feitas pelo professor das disciplinas presenciais, mas sem nehuma remuneração. Os professores das disciplinas presenciais devem produzir, lançar e disponibilizar no sistema on-line, para as escolas: metodologias, conteúdos programáticos, textos, vídeos, slides, aulas no formato não presencial e presencial, sendo que só receberá pelas aulas presenciais. O modelo se denomina “aulas invertidas”.
As aulas invertidas encobrem Aulas de EAD sem remuneração, dentro de aulas presenciais. Nela o professor produz, elabora e disponibiliza :
1) uma “PRÉ-AULA” para o aluno, com metodologia, material didático e publicação on-line;
2) uma “AULA” para a sala de aula, também com metodologia, material e publicação on-line, para acompanhamento de sua aula presencial;
3) Uma “PÓS-AULA” também com metodologia, material e publicação on line, para acompanhamento de sua aula presencial.
Neste caso, o professor recebe por uma única aula presencial e as 2 aulas (pré-aula e pós-aula), que são tipicamente aulas de EAD, não são remuneradas. Acrescenta-se ainda que o professor, ao publicar seu material, deverá confirmar que abre mão de direitos autorais e que a publicação fica de posse da instituição privada em que trabalha.
Assim estamos vendo uma pseudo formalização do trabalho de EAD, como se não fosse educação. O que temos que insistir é que o trabalhador da educação a distancia é PROFESSOR, presencial ou não. Por trás da modernidade da tecnologia, estão ocultando docência sem remuneração e transferência de funções, na medida em que a cada dia aumentam o trabalho de administração escolar para o professor e diminuem os trabalhadores da secretaria, laboratórios e toda administração escolar.
O aumento de demandas escolares fora do horário de trabalho, denominado de APOIO AO PRESENCIAL, encobre também cargas horárias de trabalho excessivas realizadas em casa, sem testemunhas, o que dificulta no caso de ações trabalhistas. Nas orientações de monografias, por exemplo, o professor do ensino superior receberá R$200,00 por 4 (quatro) meses de trabalho, trabalhando até 4 horas semanais (presenciais e semipresenciais), ou seja, menos de R$ 3,00 por hora de trabalho. É bom lembrar que são profissionais com curso superior e a maioria com mestrado.
Considerando o forte caráter de flexibilidade espaço-temporal das atividades pedagógicas da educação a distância, parece crucial que este seja o centro da análise. Nomenclaturas diversas não mudam que as condições de precarização sejam denominadas de: apoio presencial, aulas invertidas, aulas blended, ensino a distancia… O certo é que os professores estão perdendo direitos e a educação perdendo qualidade para o mercado mercantilista da educação.
Os espaços e tempos de trabalho da educação (presencial) passam por um completo redimensionamento com o advento do trabalho docente na EaD (especialmente na EaD virtual). É fundamental partirmos da compreensão de que os tempos e espaços escolares constituem fatores fundamentais para a compreensão do processo de trabalho pedagógico, inclusive para o seu desenvolvimento. Compreender o significado do espaço tempo na vida escolar e o seu sentido para o trabalho tem ganhado progressiva relevância. Isso implica reflexão sobre a lógica espaço-temporal que orienta a organização do trabalho escolar. Há muito a ser pensado entre o secular espaço da sala de aula (lugar privilegiado para o ensino-aprendizagem e para a atuação docente) e o espaço simulado dos ambientes virtuais de aprendizagem (“novo espaço” de trabalho docente). Há muito por entender entre os fragmentados tempos educacionais em momentos para a aula, para o recreio, para a disciplina de história, de matemática, etc. e os flexíveis tempos da educação na contemporaneidade – em especial, na educação à distância (EaD).
Por trás do marketing da flexibilidade de espaço e tempo, cabe um alertar que é o direito a conviver com a familia, amigos, descanso e lazer, direito ao tempo livre, que vem sendo sacrificado e retirado com o discurso de “trabalho em casa”.
Cabe lembrar que as senzalas também eram próximas da casa grande, entretanto, ali, cruelmente, todos os direitos humanos eram violados. Assim caminha a EAD com os direitos trabalhistas.
https://www.ufrgs.br/soft-livre-edu/trabalho-docente-na-educacao-a-distancia/
Entidade filiada ao
O Sinpro Minas mantém um plantão de diretores/funcionários para prestar esclarecimentos ao professores sobre os seus direitos, orientá-los e receber denúncias de más condições de trabalho e de descumprimento da legislação trabalhista ou de Convenção Coletiva de Trabalho (CCT).
O plantāo funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h.
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