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Escolas da capital ainda insistem em vestibular infantil

11 de setembro de 2012

Conquistar, aos 6 anos, uma vaga no 1º ano do ensino fundamental não é brincadeira. Nem para a criança nem para os pais. Primeiro, vem o estresse da inscrição, com congestionamentos na internet e ansiedade para conseguir se candidatar. Logo depois, uma manhã ou tarde inteira com a obrigação de cantar, desenhar, participar de joguinhos e ainda tentar adivinhar se a história contada é da Chapeuzinho Vermelho ou dos Três Porquinhos. Depois, se já está alfabetizada, escrever o resumo da história. Caso contrário, desenhar a parte de que mais gostou e caprichar no colorido, sem sair do contorno. Se quiser, dizer em voz alta o trecho para a professora, de preferência sem trocar as letras.

Os colégios particulares mais concorridos de Belo Horizonte garantem ter deixado de aplicar o chamado vestibulinho, exame vedado em parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), ligado ao Ministério da Educação (MEC), desde 2003. Na prática, porém, o ultrapassado exame de admissão dos alunos foi substituído por iniciativas modernas e criativas, como manhãs de conhecimento e atividades lúdicas. Mas, ainda que fantasiado, um teste.

O nome de batismo mudou, porém prevalece o objetivo de selecionar crianças para ingressar em determinadas escolas da capital. Nos bastidores, os pais protestam, afirmando que o clima de competição é o mesmo de antes e que os filhos sentem na pele pressão igual à de vestibulandos das universidades públicas. Ou até pior, porque a cobrança exercida sobre as crianças passou a ser ainda mais precoce, aos 6 anos, com a antecipação da entrada na escola desde 2010.

Pelo menos um caso foi parar nos tribunais mineiros, onde corre sob segredo de Justiça. Um colégio de elite da capital foi processado por ter reprovado um pequeno concorrente de 6 anos, candidato a uma vaga para estudar em 2012. A situação foi agravada porque o menino acordou com febre no dia do exame e a escola se negou a aplicar o teste em outra data. Quem conta a história é o advogado da família, que se mantém no anonimato para evitar a identificação da criança, que já tem irmãos estudando na instituição de ensino. “A mãe ficou muito revoltada, porque o garoto está alfabetizado e tem perfil perfeccionista. Ao saber que não havia passado na prova, porém, disse para a mãe não se preocupar, pois ‘já sabia que era burro’”, revela o defensor. Ele anexou como prova nos autos os cadernos caprichados da escola infantil onde o menino estudava anteriormente.

CONSTRANGIMENTO “Chamar o teste de seleção de ‘manhã de conhecimento’ não o torna legal. O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe submeter a criança a qualquer tipo de constrangimento”, alerta a procuradora Eugênia Augusta Gonzaga Fávero. Ela é uma das autoras da ação do Ministério Público Federal em São Paulo que suspendeu a prática em 2005, em caráter de liminar, e, em abril, acabou de vez com os vestibulinhos em território paulista. União e estado foram condenados a pagar R$ 1 milhão, cada, por deixar de coibir a prática na rede de ensino privada. “Havia relatos de crianças que, na véspera do teste, ficavam sem dormir a noite inteira e tinham crises de diarreia porque, no fundo, sabiam que estavam sendo avaliadas”, completa a representante do MP.

A partir da denúncia dos vestibulinhos em São Paulo, o Conselho Nacional de Educação publicou o Parecer 26/2003, proibindo a prática para selecionar alunos da pré-escola e do 1º ano do ensino fundamental. A norma vale para todo o país e sugere que instituições de ensino adotem critérios como sorteio e ordem de inscrição, com o objetivo de “evitar que uma criança pequena seja submetida, ainda que com a concordância dos pais, a qualquer forma de ansiedade, pressão ou frustração”. O documento ressalta que as avaliações dos estudantes devem ter caráter pedagógico.

“Não se admite a reprovação ou os chamados ‘vestibulinhos’. Essa avaliação das crianças pela escola, quando feita, só se justifica pela necessidade de decidir em que etapa da organização curricular o aluno poderá ser melhor atendido”, informa o documento, baseado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Em 2007, outro parecer do CNE reforçou a proibição dos exames, condenando a prática mais uma vez. Relatora do primeiro parecer sobre os vestibulinhos, a pedagoga Sylvia Figueiredo Rocha, ex-conselheira nacional de educação, explica que escolas usavam ditados e provas para selecionar crianças, mas alerta que atividades lúdicas podem mascarar um processo com fins eliminatórios.

“Elas viraram uma espécie de brecha na lei, pois não está escrito que é proibido juntar as crianças para conhecê-las e até já organizar as classes futuramente. Isso pode ser usado como um disfarce. Nessa hora, a escola identifica o menino que ainda usa chupeta e fralda e, depois, explica aos pais que a criança pode não estar madura o suficiente para entrar na instituição”, critica. Sylvia afirma que duas escolas paulistas foram levadas à Justiça por usar desses critérios e, para evitar problemas, uma delas acabou com a admissão de novatos no 1º ano do ensino fundamental. “Se os pais vão à Justiça, eles normalmente ganham, mas, como se trata de uma questão delicada, apenas os mais corajosos denunciam”, diz.

O que diz a leiO Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe submeter a criança a qualquer tipo de constrangimento ou vexame. A partir da denúncia dos “vestibulinhos” em São Paulo, o Conselho Nacional de Educação, ligado ao Ministério da Educação (MEC), publicou o Parecer nº 26, de 2003, avisando que “não se admite a reprovação ou os chamados ‘vestibulinhos’ para selecionar alunos da pré-escola e do 1º ano do ensino fundamental”. Calcada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), a norma vale em todo o país e quer “evitar que a criança seja submetida, mesmo com a concordância dos pais, a qualquer forma de ansiedade, pressão ou frustração.”

Pais e crianças se sentem alvos de testes estressantes em escolas de BH

“Pode haver uma avaliação precoce de uma criança maravilhosa. Isso cria um sentimento de rejeição enorme, pois ela conhece o ambiente da escola e depois não passa no teste”, diz Terezinha Lúcia Avelar, diretora do Sindicato de Professores.

Na tentativa de garantir o ingresso da filha em colégios tradicionais de Belo Horizonte, ano passado, a família da pequena Júlia (*), de 6 anos, passou por uma maratona de testes de conhecimento para as crianças e paciência para os pais. No primeiro processo seletivo, no Colégio Loyola, os pais ouviram palestra bastante realista, enquanto filhos participavam das chamadas atividades lúdicas nas salas de aula. “A diretora foi enfática e disse que infelizmente não havia vaga para todo mundo. Eles avaliariam o perfil das crianças e disseram que quem ficasse de fora não poderia nem recorrer”, conta Mariana.

Apesar de adotada por escolas particulares, a prática de avaliar desempenho para selecionar alunos do 1º ano do ensino fundamental é condenada pelo Parecer nº 26/2003 do Conselho Nacional de Educação. Mariana diz que em nenhum momento teve dúvida de que a filha estivesse sendo testada e poderia ser eliminada do processo. “Havia mais candidatos do que vagas”, lembra. Enfrentar tanta pressão não foi fácil para a mãe. “Se a Júlia não passasse, seria tenso explicar a situação. Havia dito a ela que participaria de umas brincadeiras e que era para ela fazer o melhor”, conta. A segunda maratona ocorreu no Colégio Santo Agostinho. Júlia foi bem-sucedida novamente, mas um dos amigos da menina teve problemas nas duas escolas.

“O colégio ligou para minha amiga dizendo que a avaliação do filho havia sido fraca. Explicaram que ele provavelmente teria dificuldade em acompanhar o ritmo da escola e pediram que tomasse aulas de reforço e repetisse a atividade, mas a mãe optou por outra instituição”, conta. No Magnum Buritis, Júlia passou mais uma vez por avaliações “lúdicas”, que incluíram desenhos e brincadeiras envolvendo matemática. “Achei que eles não trataram a seleção como um vestibular, mas me falaram que a Júlia tinha sido aprovada e que eu deveria providenciar um apoio maior para ela desenvolver alguns aspectos cognitivos”, diz.

Por meio de edital, o Colégio Loyola comunicou que as 180 vagas disponíveis para o 1º ano do ensino fundamental serão preenchidas pelo critério de ordem cronológica de inscrição. Serão feitas outras atividades lúdicas, que, segundo a assessoria de imprensa, “têm como objetivo ajudar a escola a conhecer melhor os novos alunos e a ter um melhor acompanhamento de sua vida escolar”. Embora destaque que as atividades programadas não têm caráter eliminatório, o colégio não se manifestou em relação a casos de alunos reprovados.

O Colégio Santo Agostinho informou que o processo de admissão até o 1º ano do ensino fundamental não é classificatório e que as atividades lúdicas são feitas com alunos já inscritos e para que a escola conheça melhor as crianças e divida as turmas por idade e habilidade. O colégio admitiu apenas que alguns inscritos são chamados a repetir as atividades. “São crianças que demonstram dificuldade e a família é convidada a voltar ao colégio para que se verifique melhor o perfil do aluno e a adequação na divisão das salas”, informou a instituição em nota.

A supervisora pedagógica do Magnum Buritis, Patrícia Bevilaqua, também disse que não há eliminação de alunos que tentam ingressar no ensino fundamental. Quando há mais candidatos que vagas, o critério usado é a ordem de inscrição, afirmou. “Nas atividades lúdicas, fazemos o primeiro contato com a criança, sempre prezando o cuidado e o benefício dela. Conversamos com as famílias e falamos sobre eventuais dificuldades que a criança ainda não venceu, indicando, por exemplo, o acompanhamento de um fonoaudiólogo. Mas não se trata de uma seleção excludente”, explica.

No Coleguium, a seleção é feita por meio de prova de português e de matemática, segundo o gerente de marketing, Fabrício Ribeiro. Após se inscrever, o pai agenda a data para o filho fazer o exame. Conforme está escrito no site, “os testes de seleção são provas com objetivo de proporcionar uma sondagem de todos os candidatos a ingressar na escola, a partir do primeiro ano do ensino fundamental”.

Já o diretor-executivo do Coleguium, Daniel Machado, é categórico em afirmar que a escola não aplica o vestibulinho, mas uma dinâmica voltada para no máximo 10 alunos. “A professora vai ler um texto sobre Chapeuzinho Vermelho e a partir daí vamos ver o que a criança deu conta de fazer. Com base neste trabalho, chamamos o pai para uma conversa franca, explicando o tamanho do desafio que terá de enfrentar com o filho. Se ele estiver disposto, daremos oportunidade ao filho dele”, garante Machado. E completa: “É o modo mais transparente e justo e o que gostaria que fosse feito com as minhas filhas”.

Jogo dissimulado e silenciosoProfessora da educação infantil da rede particular, Terezinha Lúcia Avelar, diretora do Sindicato de Professores do Estado de Minas Gerais, que representa profissionais de instituições privadas, denuncia que a prática da seleção condenada pelo Conselho Nacional de Educação é generalizada entre as escolas mais tradicionais. Com jogos estratégicos e brincadeiras das atividades lúdicas em mãos, Terezinha diz já ter perdido as contas de quantas vezes aplicou os testes. “Você analisa a criança como um todo, se está em processo de crescimento intelectual e motor, como se porta em grupo, como está o vocabulário, entre outros aspectos”, afirma.

Segundo ela, a atividade lúdica para fins de seleção é superficial. “Pode haver uma avaliação precoce de uma criança maravilhosa. Isso cria um sentimento de rejeição enorme, pois ela conhece o ambiente da escola e depois não passa no teste”, critica. Por diversas vezes, Terezinha diz ter se deparado com alunos “marcados” para reprovação. “Quando a criança tem uma necessidade especial, dificilmente passa. O colégio geralmente vai desmontando nos pais o desejo de matricular o aluno na instituição, dizendo que o filho não conseguiu concluir a atividade”, conta. A existência de mais candidatos do que vagas também é comum. “A taxa de inscrição que é paga acaba sendo um dinheiro extra no caixa.”

Apesar de reconhecida entre profissionais ligados à educação, a adoção de atividades lúdicas com fins eliminatórios para selecionar alunos em colégios particulares se mantém intocada em razão do silêncio das famílias e da falta de fiscalização. “Muitos pais ficam envergonhados pelo fato de o filho ter sido rejeitado e se escondem. Temos conhecimento de que a prática existe, mas as denúncias dificilmente chegam até nós”, afirma a presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais e Alunos, Edir Bambirra, ex-presidente da federação mineira.

Edir avalia que as atividades lúdicas dificultam, principalmente, a entrada de crianças com deficiência e que, por lei, deveriam ter cadeira garantida em salas do ensino regular. “A educação é um direito constitucional do aluno. As escolas usam essas atividades e dão uma conotação de joguinho, mas, no fim, analisam se a criança está alfabetizada e só aceitam quem eles querem”, critica. “Esses abusos ocorrem porque a Secretaria de Estado de Educação (SEE) se exime e não faz nada.”

SEM PROCESSOS A SEE reconhece que a fiscalização dos vestibulinhos é de sua competência, mas afirmou que a investigação sobre irregularidade ocorre apenas a partir da formalização da denúncia. As reclamações devem ser feitas diretamente a uma das 47 Superintendências Regionais de Educação de Minas. Atualmente não há nenhum processo aberto em Minas.

O presidente do Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep-MG), Emiro Barbini, afirma ter conhecimento de que a seleção de alunos ocorre. Segundo ele, por não se tratar de um órgão fiscalizador, o Sinep-MG não tem como atuar. “Esse é um problema administrativo da escola e não temos como interferir. Nossa orientação é de que o critério de admissão seja a ordem de inscrição”, afirma Emiro, que condena a prática. “Ao se eliminar uma criança de uma seleção por processo lúdico, pode-se cometer uma grande injustiça”, ressalta.

Embora em São Paulo o MP tenha atuado contra os vestibulinhos, em Minas Gerais os promotores das varas da Infância e da Juventude, assim como os da Educação, não têm posição formada até hoje sobre o assunto. (FA)

(*) Para preservar os personagens, os nomes usados são fictícios

Vestibulinhos no início da vida acadêmica só interessa à escola

Os vestibulinhos no início da vida acadêmica não são do interesse do aluno, mas sim da escola, afirma Edmundo Antônio Dias, procurador regional substituto dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal em Minas Gerais. Ele defende que o sorteio dos inscritos traria menos frustrações para a criança, que deve ser a principal interessada na questão.

Qual é o entendimento do MPF em Minas com relação à prática de vestibulinhos no primeiro ano do ensino fundamental?O exercício do ensino é uma função, ou seja, algo que se desenvolve no interesse do aluno, e nunca de quem ensina. Mas os chamados “vestibulinhos” ocorrem em torno de determinados critérios de antemão estabelecidos pela escola, para a consecução do seu projeto pedagógico. A exclusão do aluno que inicialmente possa não atender aos pressupostos do projeto pedagógico adotado termina por desvirtuá-lo. Então, esses vestibulinhos tão no início da vida escolar, na verdade, não se dão diretamente no interesse do aluno, mas da escola, ou seja, do perfil que a instituição busca.Qual é a posição do MPF em Minas a esse respeito? Vale trocar o vestibulinho por outras formas de teste?Os vestibulinhos não contribuem para a educação das crianças e não atendem ao princípio do pleno desenvolvimento da pessoa, previsto no artigo 205 da Constituição, além de estimular desde muito cedo a competição em um mundo que já é competitivo em excesso. Outras formas de seleção, incluído aí o sorteio dos inscritos, trazem menos frustrações para as crianças. O interesse a ser observado é sempre o da criança.

Um colégio pode escolher alunos com 6 anos?Cabe indagar se é razoável avaliar uma criança de 6 anos sobre o seu brevíssimo tempo de aprendizagem. Não deveria ser o contrário? Ou seja, a escola formar a criança, alfabetizando-a se necessário, para que ela atinja o máximo de seu potencial cultural? Uma eventual deficiência no processo de alfabetização poderia ser revertida por uma boa escola que esteja pronta a acolher a criança tão no início de sua vida escolar. Isso contribuiria para um mundo mais acolhedor e menos competitivo. (SK)

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