Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes explicitam autoritarismo do governo ao defender reedição do ato mais brutal da ditadura
Por Lu Sudré, no Brasil de Fato
Cassação de mandatos parlamentares, suspensão de direitos políticos de civis, censura prévia da imprensa, fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas. Há 51 anos, no dia 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional 5 (AI-5) estabelecia essas e outras medidas de exceção que deram início ao período mais repressivo da ditadura militar brasileira (1964-1985).
O AI-5 autorizou o uso de ações repressivas, chamadas de “punições revolucionárias” pelos militares, por prazo indeterminado. Carlos Fico, historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a medida também permitiu a demissão sumária de funcionários públicos e a transferência compulsória de militares legalistas e democráticos para a reserva.
Especialista em ditadura militar brasileira, Fico relata que o ato criou sistemas clandestinos de repressão que permitiram prisões arbitrárias e torturas de forma sistematizada, a partir da atuação de uma polícia política: o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI).
“As pessoas presas eram imediatamente torturadas para revelar companheiros, planos e etc. O sistema de espionagem também foi ampliado para colher informações. Havia órgãos de informação no Brasil inteiro, em todas as empresas estatais, autarquias e universidades.”
A medida também suspendeu a possibilidade de habeas corpus em casos de “crimes políticos”. O dispositivo jurídico serve de garantia para que o acusado não tenha seu direito à liberdade ameaçado por alguma ilegalidade, qualquer violência, coação ou abuso de poder. “Quem era preso, mesmo que o advogado ou a família soubesse que estava sendo torturado, não podia recorrer”, acrescenta o historiador.
Violações generalizadas
Segundo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), 434 pessoas foram assassinadas ou desapareceram durante a ditadura militar. O militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Norberto Nehring, economista e professor da Universidade de São Paulo (USP), foi uma das vítimas.
Maria Lygia Quartim de Moraes, viúva de Norberto, conta que ao ver toda e qualquer forma de resistência democrática sendo esmagada pelo AI-5, o marido entendeu ser urgente a luta armada e direta contra o autoritarismo. O economista, então, deixou o PCB e passou a integrar a Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella.
Dois anos depois, em 1970, Norberto foi capturado por agentes da ditadura e torturado até a morte pelo delegado Sérgio Fleury, reconhecidamente um dos mais perversos torturadores do regime.
“Foi instaurado aquilo de mais terrível: o terrorismo de Estado. Eles sequestraram, matavam, torturavam, tiravam pedaço. As pessoas passaram a ter medo. Não podiam se reunir, não podiam falar. As pessoas tinham medo até porque não havia nenhum amparo legal”, relembra Maria Lygia, que, décadas mais tarde se tornaria presidente da Comissão da Verdade Octávio Ianni.
“Não foi só uma monstruosidade jurídica, foi a instauração de uma violência sem precedentes e que, de alguma maneira, permanece até hoje. A chamada redemocratização foi feita sob a tutela militar”, arremata.
“Vai virar presunto”
Anivaldo Padilha, militante da Ação Popular (AP) e preso político da ditadura militar, classifica o AI-5 como a fase mais sangrenta golpe de 64. Em entrevista ao Brasil de Fato no ano passado, em razão dos 50 anos da medida, Padilha afirmou que o ato estabeleceu a tortura como um método sistemático de interrogatório, de assassinato e de desaparecimento forçado.
Detido pela Operação Bandeirantes (OBAN), em 1970, criada com o objetivo de combater e caçar organizações que faziam oposição ao regime militar em São Paulo, Padilha ficou preso durante dez meses. Os três primeiros no DOI-CODI.
“Eu comecei a ser torturado no momento em que cheguei lá. O capitão Albernaz, que já era conhecido como um dos piores carrascos do DOI-CODI, me disse: ‘Começa a falar porque a guerra acabou pra você. Se não falar o que sabe, vai virar presunto.’ Esse era o termo que usavam no esquadrão da morte para os cadáveres que ‘surgiam’, que eram encontrados nos terrenos baldios de São Paulo, assassinados pela polícia”, relatou o ex-preso político.
Ao se negar a dar informações sobre o paradeiro de outros militantes e organizações clandestinas, foi torturado frequentemente. “Falei que não sabia de nada, neguei. Fui imediatamente torturado com choques elétricos, pancadas, com a cadeira do dragão [uma cadeira elétrica] e ameaçado de ser colocado no pau de arara. Fui torturado durante várias horas no primeiro dia e jogado na cela.”
Novo AI-5
Cinco décadas depois, o ato que institucionalizou o terror e a perseguição política aos opositores do regime, foi defendido pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro contra o que chamou de radicalização da esquerda, a exemplo dos protestos no Chile.
“Se a esquerda radicalizar, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”, afirmou o parlamentar, no fim de outubro.
Carlos Fico, autor do diversos livros sobre a ditadura, condena a fala de Eduardo. Um dia depois, o deputado federal disse que foi “um pouco infeliz” na declaração.
“Ele desbordou, ultrapassou o limite de alguém ser reacionário ou autoritário na medida que fez propaganda de um ato que atenta contra o Estado Democrático de Direito. É um crime. Espero que a Comissão de Ética e o próprio Supremo punam o deputado por essa declaração.”
O pedido de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro por quebra de decoro, apresentado por PT, PSOL, PCdoB e Rede, terá o deputado Igor Timo (Podemos-MG) como relator. A escolha do parlamentar foi anunciada em 5 de dezembro pelo presidente do Conselho de Ética da Câmara, Juscelino Filho (DEM-AP).
Conforme determina o regimento interno do Conselho de Ética, Timo tem dez dias úteis para apresentar um parecer preliminar sobre a representação contra Eduardo e avaliar se o processo deve ser admitido ou arquivado.
Para Maria Lygia Quartim de Moraes, também socióloga e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), assim como em 1964, a ascensão do conservadorismo que atingiu em cheio a sociedade brasileira e resultou na eleição de Jair Bolsonaro é uma resposta a avanços sociais.
“Tamanho é o escalabro dos nossos oficiais que ele preferem um regime de violência, de ignorância e de conservadorismo, do que um governo que minimamente se preocupe com o povo”, opina.
Insistindo no tema
Menos de um mês depois, Paulo Guedes, ministro da Economia, repetiu o filho de Bolsonaro ao comentar os primeiros discursos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após deixar a prisão.
“Quando o outro lado ganha, com dez meses, você já chama todo mundo pra quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5”, afirmou Guedes.
Assim como o deputado federal, Guedes foi massivamente criticadas. Os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, por exemplo, se pronunciaram contra a fala do ministro da economia.
“O AI-5 é incompatível com a democracia. Não se constrói o futuro com experiências fracassadas do passado”, criticou o magistrado.
Maia, por sua vez, disse que o uso recorrente de ameaças por integrantes da gestão de Jair Bolsonaro gera insegurança sobre o intuito do governo. “Tem que tomar cuidado, porque se está usando um argumento que não faz sentido do ponto de vista do discurso, e como não faz sentido, acaba gerando insegurança em todos nós sobre qual é o intuito por trás da utilização de forma recorrente dessa palavra.”
Ditadura reformulada
As declarações trouxeram à tona leituras de que o governo Bolsonaro poderia, de fato, tentar uma escalada autoritária paralela ao AI-5, considerando que o próprio presidente por diversas vezes elogiou torturadores e o próprio regime militar, além de descreditar o trabalho da Comissão da Verdade.
Entretanto, os especialistas entrevistados pelo Brasil de Fato discordam da avaliação de que seria possível um ato parecido com o que completa 51 anos neste 13 de dezembro.
“O que poderia acontecer? Fecharem o Congresso Nacional, como foi o AI-5? Cortar prerrogativas do Supremo Tribunal Federal? Isso é uma loucura. Se acontecer uma coisa dessa ou tentarem fazer uma coisa dessa no Brasil, hoje, iríamos para um patamar de realidade completamente distinto. É equivocado ficarmos cogitando essa possibilidade, esses riscos, porque além de ser muito difícil imaginar, por exemplo, que as Forças Armadas cerquem o Congresso com tanques, impedindo seu funcionamento, e prendessem deputados e senadores, é uma cena dantesca”, pondera Carlos Fico.
Segundo a análise de Quartim de Moraes, uma “reedição do AI-5” está sendo implementada mas de outra forma. A retirada dos direitos trabalhistas, a repressão policial, a criminalização dos movimentos sociais e o genocídio de comunidades indígenas e quilombolas, para ela, são exemplos do mesmo autoritarismo de 1968.
A socióloga cita ainda que a adoção do modelo neoliberal dos “Chicago Boys” também se assemelha a ditadura chilena de Augusto Pinochet.
“O que é isso? Estamos em pleno vigor da democracia? Não! É assim que eles fazem. Aos poucos. Para quer dar um golpe? Não precisa”, enfatiza a docente da Unicamp. “Agora, na prática, eles estão criando todos os instrumentos legais, entre aspas, para deitar e rolar. Coisas que nem sabemos, que não conseguimos acompanhar.”
Renan Quinalha, advogado e ativista dos direitos humanos, também avalia que não há possibilidade de um golpe no “sentido tradicional”, como foi o de 1964, porque os militares estão contemplados na formação do governo Bolsonaro.
No entanto, para ele, sem dúvida há uma crescente militarização de um novo regime, no qual o autoritarismo se exerce de maneira mais sútil, travestindo-se de democracia.
“Essa política que a ditadura praticava de torturas, de desaparecimentos, de execução sumária ainda hoje são praticadas contra a população jovem e negra nas periferias das grandes cidades, contra as populações indígenas e quilombolas. [São praticadas] no sistema carcerário brasileiro, para onde eram mandados os presos políticos e onde estão os presos atuais, também marcados por graves violações de direitos humanos”, denuncia.
Já na visão de Carlos Fico, a gestão do militar reformado não propôs nenhuma política que se aproximasse das possibilidades punitivas extremistas do AI-5. Por outro lado, apresentou dezenas de medidas graves, em “uma mistura explosiva de autoritarismo e despreparo”.
O professor de História do Brasil da UFRJ grifa a proposta do excludente de ilicitude como um exemplo emblemático. “Esse tipo de defesa dos agentes policiais, para atirar, para matar caso se sintam ameaçados, é evidentemente, extremamente autoritário. Passa uma mensagem de que a polícia pode fazer o que quiser. Só o fato do governo defender isso, o faz responsável pelo aumento de mortes causadas pela polícia militar”.
Em meio a esta conjuntura, Maria Lygia ressalta a importância de defender a memória dos mortos e desaparecidos da ditadura brasileira para que a história e a verdade sejam respeitadas.
Aos 76 anos, mesmo após ter o marido torturado e executado, a socióloga demonstra perplexidade com o conservadorismo atual da sociedade brasileira.
“Uma coisa é um golpe militar, não há opção. Outra coisa é um país que elege uma milícia. Uma milícia que tortura, que mata, que preconiza a violência. Imagina o que é hoje, ver um cara, usar uma camiseta com o nome [Coronel Brilhante] Ustra? Ouvir que se tem saudade da ditadura? É um escárnio, uma coisa tristíssima. É horroroso. É alarmante. Nunca me senti tão infeliz no Brasil como estou me sentindo agora.”
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