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Artigo: Fragilizada e financeirizada, indústria não possui projeto para o Brasil

10 de abril de 2019

É evidente que a proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo federal é profundamente desfavorável aos trabalhadores participantes do Regime Geral, especialmente os mais pobres. A PEC exige um tempo de contribuição praticamente inatingível para os trabalhadores menos qualificados que passam boa parte da idade ativa na informalidade e em empregos de alta rotatividade. Para aqueles que conseguirem aposentar-se nos parâmetros propostos, o valor de um salário mínimo será o teto para grande a maioria. E, ainda assim em um sistema de “seguro velhice” individual privado sem a obrigação da contribuição das empresas nas quais tenha trabalhado, caso vingue a proposta de criação do regime de capitalização puro. Ademais, a proposta extingue a garantia constitucional do reajuste anual da aposentadoria pelo menos o suficiente para repor a perda decorrente da inflação do período. Sem considerar as alterações no BPC (Benefício de Prestação Continuada), na Previdência dos trabalhadores rurais e nas pensões que de tão cruéis encontram resistência até mesmo entre as bancadas parlamentares que apoiam o governo.

É também patente que as razões para a urgência de tão dura proposta não se sustentam. Este é o caso do gargalo causado pelo crescimento relativo do número de aposentados. Se fosse considerado que quase 40% dos trabalhadores do setor privado não contribuem com a Previdência chegar-se-ia à conclusão de que a elevação da razão entre trabalhadores na ativa e aposentados deveria ser compensada por uma política duradoura de transformação das características estruturais do mercado de trabalho brasileiro como a alta rotatividade, alta informalidade e baixa remuneração média, ampliando assim a parcela dos trabalhadores que contribuem com o sistema. Isso, no entanto, se o objetivo da proposta fosse reformar para melhorar o sistema de Previdência Pública, o que, obviamente, não é o caso.

O alardeado déficit atual da Previdência também não é justificativa consistente para a reforma proposta. Em primeiro lugar, porque o governo insiste, por um lado, em não considerar os tributos como a CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) e o Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) no cálculo das receitas da Seguridade Social e, por outro, em incluir o déficit do Regime Próprio dos servidores federais e militares no conjunto da Seguridade Social. Além disso, não se leva em conta a diferença entre o déficit estrutural e o conjuntural. Este último decorrente da profunda crise econômica seguida de estagnação que o país vive desde 2015 e das concessões realizadas aos capitalistas na forma de desonerações da folha de pagamentos como instrumento de manter os níveis de emprego.

Se os fins justificam os meios, era de se esperar que a reforma proposta fosse acompanhada de uma justificativa sólida de seu benefício para o país. Mas, afirma-se apenas que a proposta de reforma decorre da necessidade de gerar credibilidade do país diante dos investidores, especialmente internacionais. O raciocínio é o de sempre: o país vive uma crise fiscal que afasta os investidores, pois não há confiança na capacidade de solvência do Estado. Somente com a realização de reformas que reduzam o gasto público e garantam a geração de superávit primário permanente em patamar elevado serão geradas as condições para a retomada dos investimentos.

Esse política da austeridade, como a realidade já deu inúmeras provas, não gera crescimento econômico. Representa, na verdade, a transmissão para a política fiscal dos interesses do oligopólio financeiro que controla enormes massas de recursos líquidos e, assim, possuem um elevado poder de coerção sobre os Estados. Nada de novo. EC 95 e a PEC da Previdência são a dupla prioritária no programa da oligarquia financeira – esse termo não é força de expressão – nos últimos anos para executar mais uma volta no torniquete da dominação sobre o Brasil.

Esse é um buraco sem fundo. As reformas desnacionalizantes dos anos 1990 privaram o Estado brasileiro de Soberania e força econômica capazes de impulsionar um projeto nacional de desenvolvimento. Tornaram o país – Estado e empresas – dependentes das decisões de investimento e aplicação dos grandes grupos financeiros privados, sobretudo internacionais, e das matrizes das multinacionais que operam no país. Desse modo, a cada crise econômica, com o consequente enfraquecimento das contas públicas, os donos do dinheiro aumentam as exigências para seguirem financiando a economia brasileira. No passado, foi o tripé macroeconômico, ontem a EC 95 e a reforma trabalhista, hoje a reforma da Previdência. Em seguida, a desconstitucionalização total dos gastos públicos, depois a independência formal do Banco Central e, em algum momento, o fim do salário mínimo legal. Como os interesses do oligopólio financeiro chocam-se com as necessidades de superação do atraso industrial, tecnológico e social, aprofundando-o, o país vê-se preso a uma armadilha.

Nesses tempos de ameaça de regressão civilizacional no Brasil não se faz nem questão de ocultar da luz do dia a pressão pela captura do Estado realizada pela oligarquia financeira. Lembremo-nos da declaração em setembro de 2014 de Tony Volpon, então diretor regional de um grupo financeiro internacional que teria uma passagem pelo Bacen entre 2015 e 2016, de que a pressão do setor financeiro sobre o governo poderia ser chamada de “presidencialismo de coação”. E acrescentou, no final de 2018, que no Brasil há dois eleitorados, um que vota de dois em dois anos e outro que detém a dívida pública e vota todo dia, podendo derrubar um governo quando lhe interessar[1].

A defesa da reforma da Previdência não é, contudo, feita exclusivamente pela parcela financista dos capitalistas. Pelo contrário, empresários do setor industrial e de Serviços e as entidades que os representam politicamente militam firmemente pela aprovação da PEC. Os dias 25 e 26 de março, por exemplo, foram dias movimentados para a classe dominante. Ocorreram em Brasília duas reuniões dos grupos de proprietários de grandes empresas que se intitulam “Movimento Brasil 200”[2] e “Coalizão Indústria”[3] com o presidente da República e a mensagem principal transmitida foi o apoio empresarial à reforma da Previdência. Em São Paulo, a FIESP preparou um evento com o vice-presidente da República que contou com a presença de mais de 600 capitalistas. O foco era transmitir a preocupação generalizada dos presentes com a falta de prioridade do Palácio do Planalto com a agenda empresarial, em especial com a reforma da Previdência.

Os capitalistas reafirmam a crença de que a reforma da Previdência é vital para o retorno do investimento. Alertam – não sem um tom de ameaça – que sem a reforma “não haverá emprego”, “o país quebra”, “ninguém vai investir”. É grande a convergência destes com a visão do setor financeiro. As declarações recentes dos capitalistas do setor não financeiro endossam a análise de que o principal problema do país é o elevado gasto público, sendo a Previdência Pública a causa maior. Repetem que a realização da reforma traria credibilidade ao país e levaria a uma redução da taxa de juros. Não vão além disso. Também o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), ligado aos grandes grupos industriais nacionais, em um documento de setembro de 2018 intitulado “Indústria e o Brasil do futuro” advoga que o entrave principal ao crescimento econômico do país é o desequilíbrio fiscal e a reforma da Previdência ao lado da reforma tributária são os temas prioritários a serem enfrentados.

Percebe-se que a crítica do setor não financeiro ao domínio das Finanças é quase nula. Como se verá a seguir, existem um conjunto de engrenagens que constrangem o Estado a servir à oligarquia financeira em franco prejuízo das atividades produtivas e que não inquietam os capitalistas industriais e do setor de Serviços.

Em primeiro lugar, dado que a redução da taxa de juros[4] ganhou a centralidade da preocupação empresarial devia-se colocar no primeiro plano a injustificável política do Banco Central em manter a taxa SELIC estável nas últimas sete reuniões diante de uma taxa de inflação quase sempre abaixo da meta e nenhuma pressão de demanda. E, diante da recente declaração do banco central norte-americano de que interromperá a elevação da taxa de juros, reduzindo o diferencial esperado entre a taxa de juros interna e externa, deviam exigir do Banco Central do Brasil uma sequência de reduções da taxa SELIC. Naturalmente se levantariam as vozes do lado oposto bradando que é impossível reduzir a SELIC significativamente dada a elevada relação entre a dívida pública e o PIB.

Estes fecham os olhos, porém, para o fato de que, além do efeito da própria crise sobre as receitas do governo, os juros elevados são também causa da pressão sobre as contas públicas. Mesmo após a redução da SELIC entre 2016 e 2018 de 14,25% para 6,5% a.a., o pagamento de juros da dívida consumiu em recursos públicos – captados, é bom lembrar, em um sistema de tributação penoso para os trabalhadores e dócil para a alta burguesia – mais de 350 bilhões de reais em 2018, o equivalente a 5,2% do PIB. O déficit total da Previdência no respectivo ano, mesmo no cálculo equivocado e pró-rentistas feito pelo governo, foi de 290 bilhões de reais. Ou seja, no pior ano do balanço contábil da Previdência, o déficit desta ainda foi inferior ao gasto com pagamentos de juros da dívida pública no ano em que a taxa de juros foi a menor da série histórica. E, vale notar, que enquanto os recursos da Previdência vão direto para o consumo das famílias, estimulam toda a economia e parte retorna ao Estado na forma de impostos, o gasto com juros da dívida direciona-se a uma minoria e possui baixo efeito sobre a demanda agregada.

Em segundo lugar, os capitalistas também não se mobilizam com o mesmo entusiasmo para denunciar que, como aponta o próprio Iedi, as taxas de juros ao tomador de empréstimos caíram menos de um terço no mesmo período em que a taxa SELIC foi reduzida em mais de 50%. Tampouco reivindicam a eliminação de mecanismos que diminuem a eficácia da política monetária, isto é, impõem elevações da taxa de juros para controlar a inflação acima do que seria necessário na ausência de tais mecanismos. É o caso, por exemplo, das Letras Financeiras do Tesouro (LFT’s), títulos públicos pós-fixados indexados à taxa básica de juros, ou seja, são reajustados segundo as variações da taxa SELIC. Logo, quando o Bacen realiza uma trajetória de elevação da taxa de juros, as LFT’s se valorizam, consequentemente seus detentores terão um aumento de seus rendimentos e maior poder de consumo.

Com isso há dois problemas. O primeiro é que quando o Bacen eleva a taxa SELIC, o objetivo é reduzir a capacidade de gasto dos indivíduos para controlar a inflação, porém quem detém LFT’s terá maior poder de compra. Como as LFT’s representam boa parte da parte da dívida pública federal (37% em janeiro de 2019), tem-se um efeito contrário ao pretendido pelo Bacen quando este eleva a taxa de juros, obrigando-o a realizar novas elevações para reduzir a demanda agregada e, consequentemente, a inflação. O segundo é que a correlação direta entre elevação da taxa SELIC e valorização das LFT’s amplia a necessidade de destinação de recursos para o pagamento dos juros da dívida, ou seja, são prejudiciais às contas públicas. Vale acrescentar, que é improvável que as LFT’s deixem de existir naturalmente, como pretendem os economistas liberais, pois elas são uma exigência da oligarquia financeira para financiar o Estado brasileiro em tempos de turbulência.

Em terceiro lugar, nem mesmo o ataque direto sofrido pela Indústria com o fim da Taxa de Juros de Longo Prazo praticada pelo BNDES que garantia condições um pouco mais favoráveis para o financiamento dos investimentos privados – no país que pratica, ainda hoje, taxas de juros reais entre as mais altas do mundo – recebeu a devida oposição por parte dos capitalistas. Tem sido tamanha a incapacidade dos capitalistas industriais de fazer frente ao setor financeiro que, mesmo tendo apoiado maciçamente a candidatura do atual Presidente da República, o novo governo deu de ombros às súplicas de diversas entidades representantes dos empresários que solicitavam que pelo menos não se extinguisse o Ministério de Industria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).

Por fim, a atual política do Comitê de Política Monetária de reduzir paulatinamente a meta anual de inflação chegando a 3,75% em 2021 com banda de tolerância de 1,5% representa mais um aperto na camisa de força que sufoca o crescimento econômico do país e aumenta o poder de pressão da oligarquia financeira sobre o Bacen. Quanto a isso, o que dizem os capitalistas do setor não financeiro? Nada.

Esse comportamento político da burguesia não financeira não se explica, porém, somente por uma capitulação ideológica ao capital financeiro ou por uma cegueira quanto aos próprios interesses. Naturalmente, a entrada no mercado de trabalho todos os anos de economistas em sua grande maioria com formação liberal e a dominação quase completa do debate econômico na grande imprensa nacional pelos funcionários da oligarquia financeira tem papel não desprezível na conformação do pensamento médio do conjunto dos capitalistas. Contudo, há características da forma de funcionamento do capitalismo atual que geram esse comportamento.

As grandes empresas de capital aberto possuem no topo de suas prioridades a elevação da remuneração de curto prazo dos acionistas. Entre 2009 e 2011, o valor recebido pelos acionistas do conjunto das empresas do Novo Mercado cresceu em média 25%. A consequência dessa característica é a drenagem de recursos que poderiam ser direcionados para o investimento produtivo e uma pressão constante por redução de custos, em especial, os ligados à mão-de-obra, como o recolhimento do INSS patronal. As empresas tornam-se também reféns dos movimentos voláteis do mercado financeiro.

Outra característica é a participação dos ganhos com aplicações financeiras (as operações de tesouraria) no total das receitas das empresas não financeiras. Esse elemento foi muito notado quando, ao final de 2008 na fase aguda da crise capitalista global, empresas industriais brasileiras tiveram grandes perdas, pois especulavam no mercado de câmbio apostando na valorização do real, porém a moeda brasileira sofreu uma abrupta desvalorização. Mas, também entre 2010 e 2013, boa parte da queda do lucro líquido das empresas não financeiras adveio das perdas com aplicações financeiras em decorrência da redução inédita da taxa básica de juros até março de 2013.

As transformações no modo de funcionamento do capitalismo brasileiro desde os anos 1990 e os impactos da crise capitalista global sobre a fragilizada estrutura produtiva do país tornaram as grandes empresas industriais e de Serviços altamente subordinadas e integradas ao setor financeiro. Isso, juntamente com a hegemonia ideológica neoliberal, explica o coro uníssono dos capitalistas em defesa da atual proposta de reforma da Previdência, muito mais que as razões por eles alegadas. Os capitalistas do setor não financeiro, sobretudo da Indústria, nunca estiveram tão submetidos à oligarquia financeira, aceitando passivamente a posição de sócio menor, ainda que guardem contradições secundárias.

Mais do que em qualquer outro momento, a reconstrução de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil dependerá da convicção de sua necessidade por parte do povo trabalhador, tornando-se assim seu protagonista. Portanto, uma proposta de estratégia desenvolvimento, para ser factível, deverá ser simultaneamente nacional e popular, ou seja, deverá integrar diretamente o desenvolvimento soberano e as demandas prioritárias do povo[5]. O amadurecimento dessa compreensão e o delineamento desse projeto pode contribuir para o campo democrático realizar a Resistência Ativa à regressão liberal-conservadora em curso.

*Por Diogo Santos

Diogo Santos é economista. Mestrando em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Concentra sua pesquisa na área de Economia Brasileira Contemporânea.

***

[1]BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff e o Golpe de 2016: poder estrutural, contradição e ideologia. Economia Contemporânea, p. 1-6, 2017. Volpon, Tony. O mundo não vai ajudar o próximo presidente. Entrevista concedida ao Portal Capital Aberto. 2018.

[2] O principal líder é Flávio Rocha, proprietário da empresa Riachuelo. Também foi constituída nessa semana na Câmara dos Deputados uma frente parlamentar com o mesmo nome cuja a líder é a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP). Esse grupo se define como “liberal na economia” e “conservador nos costumes”.

[3] Participam a Coalizão Indústria as seguintes entidades: Instituto Aço Brasil; Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea); Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos (Abrinq); Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados); Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB); Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC); Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee); Associação Brasileira de Indústria de Máquinas Equipamentos (Abimaq); Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast); Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim); Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Além da defesa da reforma da previdência, o grupo possui uma lista de propostas para a retomada do crescimento econômico chamada “Agenda Brasil” na qual defendem o investimento em construção civil e infraestrutura como caminho para o crescimento e divergem da proposta de aprofundamento abrupto da liberalização comercial.

[4] O Ministro da Economia chegou a afirmar que a aprovação da reforma da Previdência geraria uma redução de cerca de 2p.p. na taxa de juros de curto prazo. Um dia depois, o presidente do Bacen desautorizou a previsão do ministro.

[5] No próximo texto esse ponto será desenvolvido.

** Publicado originariamente no site Carta Maior, 9/4/19

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