A realidade atual nos mostra que pensar a humanidade é também pensar sobre a importância da ciência e de investimentos em pesquisa. Na Revista Elas por Elas deste ano, uma das reportagens aborda os obstáculos enfrentados pelas mulheres cientistas, em um contexto de cortes no setor de uma histórica desigualdade de gênero no ambiente acadêmico.
Na reportagem, publicamos uma entrevista com a pesquisadora Karla Torres, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Gênero e Diversidade do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG). Confira!
“A sociedade científica tem uma dívida histórica com as mulheres”
Embora as mulheres sejam maioria na área da educação, levantamentos apontam que a participação delas diminui quando se trata de postos mais altos na carreira acadêmica. Na prática, elas ainda ocupam poucos lugares no topo da carreira e em posições de destaque na ciência. A Academia Brasileira de Ciências, por exemplo, expressa bem essa desigualdade. Do total de membros titulares da instituição, 477 são homens e apenas 86, mulheres – menos de 20%. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), menos de 30% dos investigadores no mundo são mulheres.
As mulheres enfrentam mais desafios na ciência em função do preconceito de gênero?
Sim, as mulheres enfrentam mais desafios na ciência em função de seu gênero. Existem dois tipos principais de desafios que elas enfrentam nas áreas acadêmicas e profissionais, inclusive na ciência. Um deles se refere às dificuldades que sofrem para entrar e permanecer em áreas conhecidas como “masculinas”, como a da Engenharia e a da Tecnologia de Informação. Preconceitos formados e reforçados na sociedade desde a infância vão afastando as mulheres dessas áreas, fazendo-as acreditarem que não são capazes de se identificarem ou de serem bem-sucedidas nelas. Esse tipo de dificuldade horizontal é conhecido na literatura como “labirinto de cristal”, por se tratar de barreiras invisíveis que as mulheres enfrentam para fazer o que realmente querem. Outro tipo de desafio é aquele relativo ao crescimento profissional de uma mulher dentro de uma determinada área. Apesar de muitas vezes não haver nenhum tipo de obstáculo visível ou declarado, uma mulher vai sentir maiores resistências para conseguir ocupar cargos de liderança e de destaque em função de preconceitos conscientes ou inconscientes de gênero. Esse tipo de dificuldade vertical é conhecido na literatura como “teto de vidro”. Ambos são obstáculos invisíveis, porém reais, que uma mulher vai ter de lidar ao longo de sua vida acadêmica e profissional, inclusive na ciência, principalmente se escolher áreas predominantemente masculinizadas.
Você diria que a ciência é um ambiente patriarcal?
Sim, com certeza. O ambiente científico é historicamente dominado por homens e, ao longo da história, muitas mulheres foram banidas desse espaço ou o ocuparam de forma fragilizada. Somente no último século é que começamos a ter presença significativa nas universidades, e hoje já somos maioria nos cursos de graduação. No entanto, isso não quer dizer que já estamos em situação de igualdade: a presença feminina pode não atingir 20% em cursos de algumas áreas, como os de Tecnologia da Informação, por exemplo. No mercado de trabalho isso também não se reflete: apesar de serem mais qualificadas, mulheres ainda são a maior parte das pessoas desempregadas. Quando se analisa cargos de chefia percebe-se que quanto mais alto o cargo menor o percentual de ocupação feminina.
Dentro do meio científico, mulheres ainda hoje têm dificuldade de terem seus trabalhos reconhecidos e, ao longo da história, muitas ainda tiveram seus resultados roubados por colegas, que acabaram ficando com todo o mérito das pesquisas para si, fenômeno conhecido como “efeito Matilda”. A sociedade científica tem uma dívida histórica com as mulheres: não só pela falta de incentivo, mas também por muitas vezes ativamente impedi-las de terem sucesso em suas carreiras. Para verificar isso, basta olhar a história do prêmio Nobel, em que prêmios foram erroneamente atribuídos a homens, e há uma quantidade mínima de mulheres premiadas, mesmo em áreas em que hoje elas são maioria. O assédio é outra das dificuldades que estamos sujeitas a enfrentar no meio científico. Praticamente toda mulher cientista tem uma história para contar de quando iniciava na carreira e foi assediada por algum superior. Nós, mulheres, precisamos mais e mais ocupar esse espaço da ciência. Não só ocupá-lo em números, mas ocupá-lo também em força e sororidade: precisamos resistir, persistir e ocupar espaços de liderança, contribuindo para que o acesso de outras mulheres seja mais justo e igualitário.
Você já enfrentou alguma discriminação de gênero no ambiente da ciência?
Sim, várias vezes. Muitas das situações passaram desapercebidas no momento em que ocorreram, porque nem sempre eu tive a consciência e a força que tenho hoje para identificar e me defender do preconceito de gênero. Mesmo assim consigo me lembrar de algumas situações. Por exemplo, como em uma apresentação do doutorado no exterior em que, de todos os palestrantes (a maioria estudantes), eu fui a única a ser ferozmente sabatinada por alguns pesquisadores presentes. Eu era a única mulher apresentando naquele momento. Ou mesmo antes, quando sofri assédio de um professor de uma das instituições mais renomadas do Brasil, a quem fui procurar para ser um possível orientador de doutorado. Esse não foi um evento isolado e teve consequências drásticas na minha história profissional: esse professor me perseguiu durante anos, fazendo com que eu até decidisse abandonar o trabalho científico na Astronomia por um longo período, por medo que a sua influência na área pudesse me prejudicar. Só depois de me fortalecer o suficiente e ter a certeza de que ele não poderia mais me causar danos profissionais, é que consegui voltar a fazer pesquisa científica na área que escolhi.
Sua atuação em áreas majoritariamente masculinas representou um desafio maior para você?
Entrei na graduação em Ciência da Computação e fui a única mulher em uma turma de 30 pessoas. Esse fato, por si só, já era um tanto desestimulador. O tratamento em relação às alunas do curso era diferenciado, tanto vindo dos colegas, quanto dos professores, que aliás eram todos homens. Não sentia identificação com as pessoas do curso, não me sentia representada pelos professores. Percebi desde o início que tinha que me sobressair para ser minimamente respeitada, e me mantive entre os três melhores estudantes da turma. Mas isso não foi o suficiente para evitar piadinhas machistas, atitudes condescendentes ou inferiorizadoras, tanto de colegas quanto de professores. Já houve situações em que, mesmo sabendo que eu era a melhor candidata, perdi oportunidades de bolsas de iniciação científica ou estágio para outros colegas, escolhidos tão somente por serem homens. Até hoje, essas questões são pungentes. Quando me reúno com profissionais da área de computação frequentemente sou a única mulher, e tenho dificuldades de me identificar e de me relacionar com os colegas da área.
Quais caminhos devem ser percorridos pela sociedade para que tenhamos uma maior participação das mulheres na ciência, inclusive em áreas majoritariamente ocupadas pelos homens?
Acredito que o que precisamos é de uma sociedade feminista, em que mulheres tenham realmente as mesmas oportunidades que homens de escolherem e serem bem-sucedidas em suas carreiras. Precisamos começar a eliminar preconceitos de gênero desde a base, ou seja, desde a infância. O primeiro passo seria acabar com a distinção de brinquedos que estimulam a criatividade, a inventividade e a ação para os meninos, e brinquedos que estimulam o cuidado de crianças e da casa para as meninas. Deixemos nossas crianças brincarem com o que desejarem, para que possam desenvolver tanto o seu potencial produtivo, acadêmico e profissional, quanto o seu potencial para a empatia e o cuidado com outros seres humanos, independentemente do gênero. Precisamos parar de tentar restringir as pessoas em caixas de comportamentos e atividades esperadas segundo seu gênero, permitindo que sejam felizes fazendo aquilo que mais se identificam e podem contribuir socialmente. Na ciência não é diferente. Deixemos nossas meninas e mulheres serem curiosas, investigarem, proporem soluções, errarem sem serem julgadas por seu gênero, e busquemos dar voz às suas ideias. Mulheres já mostram todos os dias que podem fazer tudo o que quiserem. Precisamos, enquanto sociedade, parar de tentar desmotivá-las a fazerem qualquer coisa que não seja ligada ao cuidado doméstico.
Para ler a íntegra da reportagem, acesse aqui a versão virtual da 12ª edição da Revista Elas por Elas (página 57).
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