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Ofensiva contra educação de gênero faz escolas temerem falar até sobre a AIDS

3 de fevereiro de 2017

Sete projetos de lei tramitam no Congresso contra “doutrinação” e “ideologia de gênero”, apesar de o direito a estudar o tema ser garantido na Constituição

quadronegro

O ano é 2016, e o cenário é uma escola da rede pública de Porto Alegre – mas poderia muito bem ser em qualquer lugar do Brasil. Nos intervalos das aulas, vê-se adolescentes “sarrando” – gíria importada do funk, o mesmo que “se esfregando” – nem sempre com o consentimento de ambas as partes. Pelos corredores, professores fazem de conta que não veem; se alguém protesta contra os assédios, a primeira preocupação é saber se a reclamação os fará perder tempo. O conteúdo é muito, os períodos de aula são curtos, e o salário, menor ainda.

Na escola brasileira, meninas, meninos e professores – e gestores e coordenadores pedagógicos – são parte de um microcosmo que reproduz desigualdades e violências de gênero encontradas na sociedade. E, embora o direito à educação para a igualdade de gênero esteja previsto na Constituição, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e nas diretrizes curriculares nacionais, as escolas vêm falhando sistematicamente, porque deixam de discutir esses assuntos. Dentre 25 unidades federativas que sancionaram planos estaduais de educação até o fim do ano passado, 12 (11 estados e o Distrito Federal) excluíram menções à palavra “gênero” dos documentos, de acordo com um levantamento feito pela plataforma De Olho nos Planos.

Os planos de educação têm força de lei e estabelecem metas para que a educação do município, do estado ou do país avance em um período de dez anos. Por serem planos de longo prazo, eles são instrumentos fundamentais para enfrentar o problema da descontinuidade das políticas públicas educacionais no Brasil.

“Fazer referência à gênero e diversidade nesses documentos é, primeiramente, reconhecer e diagnosticar o problema da desigualdade em nossa sociedade”, diz Claudia Bandeira, assessora da Unidade Diversidade, Raça e Participação da ONG Ação Educativa, que coordena a plataforma De Olho nos Planos.

Conservadores apostam na desinformação

Como se não bastasse, atualmente, sete projetos de lei que estão no Congresso Nacional ameaçam interromper as poucas iniciativas de discussão desse assunto. As propostas são recheadas de termos como “doutrinação” e “ideologia de gênero”. Seis desses projetos foram apensados entre si e um ainda tramita sozinho.

Outra estratégia dos setores mais conservadores tem sido a de constranger os docentes que abordam gênero e diversidade na sala de aula. No ano passado, um professor de biologia do Distrito Federal recebeu uma notificação extrajudicial de uma parlamentar da bancada distrital evangélica depois de passar um trabalho para discutir a melhor inserção de alunos trans na comunidade escolar.

A ação da deputada Sandra Faraj (do Solidariedade) pegou o professor Deneir Meirelles de surpresa, mas, segundo ele, as consequências acabaram sendo positivas. “Houve uma resposta de apoio a mim muito forte na comunidade, o colégio realizou uma audiência pública. Os objetivos pedagógicos acabaram extrapolando a sala de aula”, comemora.

Ações como a da deputada, contudo, acabam desencorajando professores e gestores. Embora a Secretaria de Educação tenha respaldado Deneir – e feito questão de destacar que a abordagem sobre gênero na escola não é ilegal – muitas unidades passaram a evitar certos assuntos.

Recentemente, por exemplo, algumas escolas ficaram reticentes em aderir à programação da Semana Nacional de Luta contra a Aids, por temerem problemas com pais de alunos adolescentes, segundo informou a Secretaria de Educação do DF.

“É muito ruim para a educação que os professores sejam de tal forma intimidados a ponto de optarem por não realizar qualquer abordagem crítica, como mecanismo de preservação de suas atividades docentes”, lamenta a presidente da ONG Themis – Gênero, Justiça e Cidadania, Fabiane Simioni.

Alunas

Projetos têm tramitação acelerada

O avanço da onda conservadora no Congresso e a disseminação de termos como “ideologia de gênero” são alimentados pelo oportunismo político.“As pessoas acham que temos escolas verdadeiramente empenhadas em desconstruir estereótipos, mas isso não poderia estar mais distante da realidade”, diz Luis Felipe Miguel, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). “O que havia, entretanto, antes do afastamento de Dilma Rousseff, era uma política geral de que determinadas hierarquias podiam ser questionadas – e a escola era o espaço para a reflexão sobre isso”, pondera.

Leia mais: “O professor disse que eu precisava de um homem pra me ‘colocar na linha’”

A mais ambiciosa das propostas contra o direito à educação de gênero é a do programa Escola Sem Partido, o PL 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB/DF). O texto prevê, entre outras coisas, que “a educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’.”

Em outubro, a Câmara instalou uma comissão especial para análise do PL da Escola Sem Partido (e dos outros seis que foram apensados à proposta), o que deve acelerar a tramitação. Isso alarmou ainda mais os setores preocupados com os direitos humanos e a redução das desigualdades de gênero. Uma comissão especial abrevia o caminho tradicional que as propostas precisam fazer no legislativo, eliminando a necessidade de serem discutidas nas comissões ordinárias da Casa.

Além disso, a tal comissão é formada, em grande parte, por deputados da bancada religiosa.

A reportagem tentou contatar três dos parlamentares com projetos de lei sobre essa temática. Por três semanas, fizemos ligações ao assessor de Izalci, mas ele informou que o deputado estava inacessível. O assessor de Erivelton Santana (PEN/BA), por sua vez, parou de atender as ligações quando explicamos a pauta.

O único a responder foi Rogério Marinho (PSDB-RN), autor do PL 1411/2015. A proposta, que tramita isoladamente, tipifica o crime de “assédio ideológico” contra os alunos, que seriam obrigados a tomar posições políticas dentro da escola. “Na realidade, o assédio ideológico é quando o doutrinador fere normas nacionais e internacionais. A lei é para garantir e proteger a pluralidade de pensamento em sala de aula, em todos os sentidos, teórica, metodológica e científica”, disse Marinho.

Além da ofensiva nacional, há uma série de outras iniciativas contra a educação de gênero em âmbito estadual e local. Em Alagoas, por exemplo, a iniciativa batizada como “Escola Livre” foi sancionada em maio do ano passado. Já há duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) para impugnar a lei.

“Penso que essas normas devem ter vida curta, pois estou absolutamente convencida de que o STF vai declarar a sua inconstitucionalidade. No entanto, durante a sua vigência, produzem danos enormes”, afirma Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão. “A escola é um espaço estratégico, seja para criar uma educação de formato colonizador, como aconteceu até a Constituição de 1988, seja para promover uma educação de caráter emancipatório, que é o projeto constitucional”, completa.

Não bastasse irem de encontro à lei máxima brasileira, esses projetos – e mesmo os planos de educação que não contemplam a igualdade de gênero – estão na contramão de uma série de tratados dos quais o Brasil é signatário e das recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento das populações.

Religião na escola

Também é preocupante a volta do ensino religioso em alguns cantos do país sem a vigência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC está prevista no Plano Nacional de Educação e deve estabelecer exatamente os conteúdos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros terão o direito de ter acesso durante a educação básica. Atualmente, enquanto a BNCC é discutida pela sociedade em âmbito nacional, o tema é provisoriamente regulado de forma regional.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, uma reestruturação curricular estabeleceu a obrigatoriedade do ensino religioso não proselitista nas séries iniciais, embora essa previsão já existisse desde 1989, conforme informou a Secretaria de Educação do estado. Qualquer professor habilitado para dar aula às crianças, ou seja, com o nível médio, pode ministrar a disciplina.

“O problema é que, quando não há formação e orientação adequadas, o professor fecha a porta da sala de aula e, se quiser, reza o pai-nosso com os alunos”, comenta Paulo Henrique Carmona, que dá aula de educação física na rede pública do Distrito Federal. Em 2015, grupos religiosos distribuíam “biblinhas” em uma das escolas que Carmona trabalhava – e em que provavelmente nem todas as famílias dos alunos eram cristãs. A prática só foi interrompida quando ele e outros colegas questionaram a direção.

“Este é um território não desbravado, e nós o vemos com preocupação porque, dependendo do interesse de quem está na ponta, vira catequese“, reconhece Gilberto Garcia, presidente da comissão que discute o assunto no Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão responsável pela elaboração da BNCC.

A expectativa de Garcia é que, até março, a comissão apresente um parecer sobre o tema.

 

Para Fernando Seffner, coordenador do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a “gritaria” dos grupos conservadores é um indicativo da força da escola. “A influência do ambiente escolar sobre as novas gerações cresceu enormemente nos últimos anos, roubando um papel que antes era da família e da igreja”, contextualiza. “Eu sou um otimista e acho que a resistência está nascendo justamente dentro das escolas, como pudemos ver durante as ocupações estudantis.”

Fonte: Azmina

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