Enquanto o governo federal aposta na austeridade para recompor as contas públicas, pouco se fala no montante de recursos que deixa de entrar nos cofres devido à sonegação de impostos e tributos. No ano passado, segundo cálculos do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), foram cerca de 500 milhões de reais, ou cerca de 13% do PIB brasileiro.
Por Dimalice Nunes
Os maiores montantes são devidos à União – Previdência e Imposto de Renda – e aos estados, na forma de ICMS. Os números colocam o Brasil no nada honroso segundo lugar no mundo em sonegação, atrás apenas da Rússia, de acordo com o Banco Mundial.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão responsável pela cobrança de débitos não quitados à União, calcula que o estoque total da dívida seja de 1,8 trilhão de reais, ou 1,41 trilhão de reais excluindo débitos com o INSS. No ano passado, apenas 14,54 bilhões de reais foram recuperados, sendo 8,4 bilhões de reais em débitos tributários.
Mas por que se sonega tanto no Brasil? Especialistas divergem em alguns pontos, mas a impunidade é uma razão apontada por todos eles.
“Sonegar impostos não é crime. Só passa a ser crime quando há expediente fraudulento”, explica Bianca Xavier, sócia do setor tributário do escritório Siqueira Castro. “Se você paga o tributo está isenta a punibilidade mesmo quando houve fraude”, explica. “Entendo que ainda há uma sensação de impunidade”, complementa Arnaldo Marques de Oliveira Neto, coordenador acadêmico do MBA em Gestão Financeira e Econômica de Tributos da FGV Management.
A forma como a legislação brasileira entende a sonegação é vista como branda em relação às experiências internacionais, onde é comum que a sonegação em si seja crime. Para Bianca Xavier, é como se alguém que rouba algo ficasse livre da pena ao devolver o bem. “Na prática, se usa o direito penal não para criminalizar, mas para arrecadar tributos”, ressalta. “É a conjunção perfeita: se eu como contribuinte quiser fraudar o sistema, mesmo sabendo que estou cometendo um crime, sei que é um crime que resolvo pagando”, completa a advogada.
Para Kleber Cabral, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), se o crime de sonegação, e outros crimes relacionados ao tema, não permitissem que o pagamento do tributo retirasse a possibilidade de punição, certamente a sonegação e as fraudes tributárias seriam menores. “O pagamento deveria provocar somente uma redução da pena e não a falta de punição. O sonegador sabe que o risco de ser pego é pequeno. E, se for pego, sabe que pagará e não será preso. Assim, está criado o ambiente perfeito para proliferar a sonegação”, conclui Cabral.
Mas a impunidade, ou a impunibilidade, é parte do problema. O tamanho da carga tributária, a disfuncionalidade do sistema e os recorrentes programas de renegociação de débitos se não incentivam propriamente a sonegação, pelo menos tiram o pagamento de impostos do topo da lista de prioridades entre as obrigações financeiras de empresas e pessoas físicas.
Segundo Bianca Xavier, o fator preponderante para a tomada de decisão do empresário sonegar é a carga tributária. “A carga é extremamente alta e o empresário tem que fazer opções ou ele não consegue pagar a folha de salário, pagar fornecedores e, na maioria das vezes, deixa de pagar os tributos”, acredita. “Talvez se a carga tributária fosse menor, não haveria tanta sonegação. Mais pessoas pagariam, a base seria maior, e não seria tão complicado e pesado no bolso do contribuinte efetuar o pagamento dos tributos”, completa.
Quando se olha para a pessoa física, a sensação de “falta de retorno” também pesa, segundo Arnaldo Neto. “Falta de retorno em saúde, educação e segurança por parte do governo, adequado e proporcional ao que se paga, é o grande incentivo à sonegação”.
A complexidade do sistema tributário brasileiro também é um fator considerado pelos especialistas quando o assunto é sonegação. Para o presidente da Unafisco, essa complexidade adiciona custo às empresas, mas isso não é exclusividade do Brasil. “Basta olharmos o código tributário do Estados Unidos e de alguns países da Europa que constatamos isso”, assegura.
Para ele, muito da complexidade do sistema tributário advém de pressões de grandes contribuintes junto aos poderes executivo e legislativo. “O caso do PIS/Cofins não cumulativo é um exemplo clássico. Os empresários pressionaram e, para atendê-los, foi criada uma sistemática de créditos que agravou muito a complexidade desses tributos”, lembra Cabral. Ele se refere ao regime que permite às empresas descontar certos gastos que tiveram para produzir seus produtos, modalidade usada predominantemente por grandes empresas.
Cabral explica que para que os tributos respeitem a capacidade contributiva de cada cidadão ou empresa, como manda a Constituição, é preciso olhar os detalhes de cada pessoa. “Nosso sistema tributário pode melhorar nesse ponto, e defendemos isso, mas a simplificação máxima implicaria numa justiça fiscal mínima. Temos que tomar o caminho do meio nesse aspecto.”
Renegociação frequente
Teórica e historicamente, o contribuinte que deixa de pagar seus tributos pode ser multado em até 100% do imposto devido. Mas desde 2000 o governo tem facilitado a vida das empresas com os programas de recuperação fiscal.
Como explica a advogada Bianca Xavier, esses programas vieram com o intuito de incentivar as empresas a regularizarem suas dívidas. O efeito, porém, foi de bola de neve: com a parcela de um programa de financiamento impedindo que o empresário, notadamente os menores, não conseguissem honrar com os impostos correntes. E, de tempos em tempos, o governo foi lançando programas de refinanciamento, muitas vezes com isenção de juros e logos prazos de pagamento.
“O aspecto bom do Refis é permitir que as empresas não quebrem. O aspecto ruim é que se de três em três anos vem o governo e dá um desconto de multa, juros e mora, acaba criando no contribuinte um comportamento de não pagar os tributos e esperar esse benefício”, avalia Bianca. “Então é fato: o Refis tem esse aspecto anti-isonômico, mas é um mal necessário”, conclui a advogada.
O professor da FGV concorda. Para Arnaldo Neto, os programas de renegociação não incentivam a sonegação, mas sim a inadimplência. “Como o governo, volta e meia, edita um programa especial de renegociação de débitos tributários, há contribuintes que optam por não pagar os tributos no prazo, já contando que virá mais um programa.” Neto afirma que se o governo tratasse esses programas como algo excepcional, não haveria o desestímulo para os contribuintes pagarem seus tributos no prazo.
A Unafisco é mais enfática. Para Cabral, foi criada uma cultura de expectativa por parcelamentos especiais frequentes. “Desde o ano 2000 foi criada na cabeça dos contribuintes a certeza de que haverá parcelamentos especiais e isso acarreta uma diminuição da arrecadação de 50 bilhões de reais por ano só em termos federais”, afirma.
Grandes devedores
Se são os grandes devedores que têm poder de fogo até para mudar a regulamentação de tributos, também são eles que podem arrastar por décadas disputas de cobranças na Justiça. Do total da dívida ativa, aqueles 1,84 trilhão de reais citados no início desta reportagem, 931,2 bilhões de reais, ou 64,5%, é de responsabilidade de grandes devedores. Importante lembrar que só são inscritos na dívida da União débitos julgados em todas as instâncias administrativas, com vitória para a União.
Para o professor Arnaldo Neto, o principal problema que o governo enfrenta com os grandes devedores não é a sonegação, mas sim o litígio judicial. “São litígios bilionários que se arrastam durante anos ou mesmo décadas. E quando finalmente ocorrem vitórias em favor do Fisco e o débito é inscrito na dívida ativa, ao serem executados fiscalmente pelo governo, há contribuintes que já esvaziaram seus patrimônios e não há como quitar as dívidas”, explica.
São, ainda, os grandes devedores que mais se beneficiam dos programas de parcelamentos especiais. Segundo a Unafisco, 69% dos que aderem a esses programa são empresas que faturam mais de 150 milhões por ano.
Para Kleber Cabral, os grandes contribuintes são os que mais investem para estruturar planejamentos tributários agressivos que, em boa parte dos casos, são enormes esquemas de fraudes. “Bancos e outras grandes empresas estimulam seus executivos a trazerem propostas de “economia” tributária em troca de bônus milionários. O caso da Enron nos EUA repete-se diariamente no Brasil”, denuncia.
Fonte: Carta Capital
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