por Marcos Bagno*, na CartaCapital
Se uma mulher e seu cachorro estão atravessando a rua e um motorista embriagado atinge essa senhora e seu cão, o que vamos encontrar no noticiário é o seguinte: “Mulher e cachorro são atropelados por motorista bêbado”. Não é impressionante? Basta um cachorro para fazer sumir a especificidade feminina de uma mulher e jogá-la dentro da forma supostamente “neutra” do masculino. Se alguém tem um filho e oito filhas, vai dizer que tem nove filhos. Quer dizer que a língua é machista? Não, a língua não é machista, porque a língua não existe: o que existe são falantes da língua, gente de carne e osso que determina os destinos do idioma. E como os destinos do idioma, e da sociedade, têm sido determinados desde a pré-história pelos homens, não admira que a marca desse predomínio masculino tenha sido inscrustada na gramática das línguas.
Somente no século XX as mulheres puderam começar a lutar por seus direitos e a exigir, inclusive, que fossem adotadas formas novas em diferentes línguas para acabar com a discriminação multimilenar. Em francês, as profissões, que sempre tiveram forma exclusivamente masculina, passaram a ter seu correspondente feminino, principalmente no francês do Canadá, país incomparavelmente mais democrático e moderno do que a França. Em muitas sociedades desapareceu a distinção entre “senhorita” e “senhora”, já que nunca houve forma específica para o homem não casado, como se o casamento fosse o destino único e possível para todas as mulheres. É claro que isso não aconteceu em todo o mundo, e muitos judeus continuam hoje em dia a rezar a oração que diz “obrigado, Senhor, por eu não ter nascido mulher”.
Agora que temos uma mulher na presidência da República, e não o tucano com cara de vampiro que se tornou o apóstolo da direita mais conservadora, vemos que o Brasil ainda está longe da feminização da língua ocorrida em outros lugares. Dilma Rousseff adotou a forma presidenta, oficializou essa forma em todas as instâncias do governo e deixou claro que é assim que deseja ser chamada. Mas o que faz a nossa “grande imprensa”? Por decisão própria, com raríssimas exceções, como CartaCapital, decide usar única e exclusivamente presidente. E chovem as perguntas das pessoas que têm preguiça de abrir um dicionário ou uma boa gramática: é certo ou é errado? Os dicionários e as gramáticas trazem, preto no branco, a forma presidenta. Mas ainda que não trouxessem, ela estaria perfeitamente de acordo com as regras de formação de palavras da língua.
Assim procederam os chilenos com a presidenta Bachelet, os nicaraguenses com a presidenta Violeta Chamorro, assim procedem os argentinos com a presidenta Cristina K. e os costarricenses com a presidenta Laura Chinchilla Miranda. Mas aqui no Brasil, a “grande mídia” se recusa terminantemente a reconhecer que uma mulher na presidência é um fato extraordinário e que, justamente por isso, merece ser designado por uma forma marcadamente distinta, que é presidenta. O bobo-alegre que desorienta a Folha de S.Paulo em questões de língua declarou que a forma presidenta ia causar “estranheza nos leitores”. Desde quando ele conhece a opinião de todos os leitores do jornal? E por que causaria estranheza aos leitores se aos eleitores não causou estranheza votar na presidenta?
Como diria nosso herói Macunaíma: “Ai, que preguiça…” Mas de uma coisa eu tenho sérias desconfianças: se fosse uma candidata do PSDB que tivesse sido eleita e pedisse para ser chamada de presidenta, a nossa “grande mídia” conservadora decerto não hesitaria em atender a essa solicitação. Ou quem sabe até mesmo a candidata verde por fora e azul por dentro, defensora de tantas ideias retrógradas, seria agraciada com esse obséquio se o pedisse. Estranheza? Nenhuma, diante do que essa mesma imprensa fez durante a campanha. É a exasperação da mídia, umbilicalmente ligada às camadas dominantes, que tenta, nem que seja por um simples -e no lugar de um -a, continuar sua torpe missão de desinformação e distorção da opinião pública.
*Marcos Bagno é professor de Linguística na Universidade de Brasília
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