Pesquisa revela frustração e cansaço dos professores, que precisaram se adaptar às pressas e enfrentam falta de estrutura no ensino remoto
A rotina da professora de História Keilla Vila Flor, de Brasília, mudou completamente durante a pandemia. Ela teve redução do número de aulas, mas passou a trabalhar mais tempo para se adaptar ao ensino remoto. “Também perdemos a diferenciação do que é público e do que é privado no nosso emprego. Eu dou aula de dentro do meu quarto, que era o espaço mais privado que eu tinha. Agora deixou de ser isso. Eu acordo às seis da manhã e já vou trabalhar, e só encerro às 22 horas”, conta.
Desde que foi adotado o distanciamento social, há sete meses, por conta da pandemia do novo coronavírus, a realidade e a rotina dos professores mudaram. As salas de aula deram lugar às residências, o quadro-negro virou computador, tablet ou celular. No Dia dos Professores, marcado pelo ensino remoto e a volta gradual, e confusa, das atividades presenciais, a terceira fase da pesquisa “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do coronavírus do Brasil”, realizada pelo Instituto Península (IP), mostra que a maior parte dos docentes questionados se sente ansioso (64%) e sobrecarregado (53%).
O Instituto Península é uma organização social fundada pela família do empresário Abílio Diniz em 2010 e tem como foco a melhoria da qualidade da educação brasileira. Esta é a terceira fase da pesquisa, com mais de 3.800 professores em todo o país, realizada entre 20 de julho e 14 de agosto de 2020. As fases anteriores mostraram que 7 em cada 10 professores já haviam mudado muito ou totalmente suas rotinas em março, e 83% dos professores se sentiam despreparados para o ensino remoto em junho.
“A crise que vivemos é sanitária e econômica, mas também educacional. Ficar sete meses em casa, longe da escola, em um país que tem tanta desigualdade social, significa que as desigualdades educacionais só aumentaram. Não é que o professor não se sinta preparado, ele não estava preparado para esse momento. Houve um esforço para garantir alguma forma de aprendizagem em casa, mas não é a mesma coisa que estar na escola”, destaca Cláudia Costin, diretora do centro de políticas educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O perfil dos respondentes da pesquisa é majoritariamente feminino (80%). Este também corresponde ao percentual de mulheres no ensino básico (que compreende desde a educação infantil ao ensino médio), segundo o mais recente Censo da Educação Básica, de 2017. Segundo Flor, existe uma marcação bem forte e perceptível com relação aos níveis de ensino. Quanto mais novos os alunos, mais mulheres há na profissão. E quanto mais velhos, mais homens. “Nesta pandemia, tivemos uma série de demissões de professoras que trabalhavam com ensino infantil, já que não existe ensino infantil à distância, porque requer socialização com a criança”, diz a professora, apontando mais um obstáculo para as mulheres trabalhadoras nesta pandemia.
Educação é um processo profundamente humano. O vínculo e a questão relacional são muito importantes. O grande temor daqui para frente não é apenas que o vínculo tenha se perdido com o professor, mas com a escola. Isso é muito triste não só para os alunos, mas para o país
Professora de duas escolas privadas de Brasília, de ensinos Fundamental e Médio, Flor está entre a maioria dos professores que se sentem ansiosos, sobrecarregados e cansados nesta pandemia. O sentimento, diz, é de frustração: “Nenhum de nós se formou para fazer o que estamos fazendo. A sala de aula não é isso, estamos improvisando. Estamos frustrados em relação à prática docente porque não conseguimos executar o que fomos instruídos a executar, que é trabalhar com educação, com a formação e contato com seres humanos. À distância não é a mesma coisa”.
Os efeitos dessa adaptação na educação não são sentidos apenas pelos professores. Segundo a pesquisa “Juventudes e a Pandemia do Coronavírus”, promovida pela Conjuve, Unesco e outras entidades, que ouviu mais de 33 mil jovens em todas as regiões do país, as barreiras para a continuidade dos estudos são tamanhas que, questionados sobre a volta às aulas após o fim do isolamento social, 3 a cada 10 jovens confessam que já pensaram em não retornar.
“Educação é um processo profundamente humano. O vínculo e a questão relacional são muito importantes. O grande temor daqui para frente não é apenas que o vínculo tenha se perdido com o professor, mas com a escola. Isso é muito triste não só para os alunos, mas para o país. É retroceder em um período em que menos gente se forma nos ensinos fundamental e médio”, alerta Costin.
Os principais desafios do ensino remoto, segundo a pesquisa, são a falta de infraestrutura e conectividade dos estudantes (79%), dificuldade para manter o engajamento dos alunos (64%) e o distanciamento e a perda de vínculo entre estudantes e professores (54%). No Ensino Fundamental e no Ensino Médio, a falta de estrutura tem um impacto ainda maior: 84% dos professores citaram esta como a principal dificuldade no momento.
“Essa falta de estrutura gera frustração. Eu tive que trocar meu notebook durante a pandemia e tive que arcar com o valor completo. Assim como outros professores tiveram que comprar equipamentos para trabalhar. Esse tipo de compra sai inteiramente só do salário do professor, porque agora é uma exigência de trabalho”, conta a professora de Brasília.
A pandemia e a mudança para o ensino remoto também impactaram na percepção de aprendizagem. Segundo o estudo, 41% dos professores responderam que poucos alunos aprenderam o esperado, e 32% que cerca da metade aprenderam. Costin tenta ter uma visão positiva: “Não é a mesma coisa que aprender na escola, mas tentando ver o copo meio cheio, essa metade que foi atendida é importante. Imagina se não tivesse havido um processo de aprendizagem em casa”.
Para a professora de História, o ensino remoto pode aumentar ainda mais as desigualdades e dificuldades de aprendizado: “Se os alunos que estavam perfeitamente adequados ao sistema de ensino sentiram dificuldade, aqueles que já não estavam adequados estão com mais dificuldades ainda. Nessa lógica de produtividade, quem não está adequado acaba sendo deixado para trás. O nível de aprendizagem está baixo para todo mundo, mas ainda mais difícil para alguns alunos”.
A pesquisa ainda revela que 69% das escolas não têm previsão de retorno presencial, enquanto em 21% está prevista a volta parcial e, em 9%, a volta total das aulas. Se forem consideradas só as escolas municipais, a volta às aulas em 2020 é considerada inviável por 82% dos municípios, segundo estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM). De qualquer forma, o nível de conforto dos professores com a possibilidade de retorno é baixo, de acordo com o levantamento do Instituto Península: em uma escala de 0 a 5, sendo 5 muito confortável, a média é de 1,07. A professora Keilla Villa Flor já teve Covid-19, mas não se sente confortável com o retorno às aulas presenciais. “Se eu pudesse, só voltaria quando tivesse vacina, mas, como não depende só de mim, semana que vem já estarei em sala de aula”.
Ex-ministra da Administração e Reforma do Estado no governo Fernando Henrique Cardoso (1995 -2000), ex-secretária de Cultura do Estado de São Paulo (2003 -2005) e mentora de 50 secretários municipais e três estaduais de educação na resposta a covid-19, Cláudia Costin não se surpreende com esse dado:
“É natural que não estejam confortáveis com a volta às aulas. A perda do vínculo com a escola não é só do aluno, mas dos profissionais de educação também. O comportamento das autoridades brasileiras de não levar a sério a pandemia inicialmente trouxe uma grande insegurança para professores que levam a sério a ciência. Todos nós estamos inseguros, e a resposta educacional do governo deixou uma sensação de mal-estar. A segurança vai ser construída aos poucos nesse processo de volta. Em cinco estados já começou o processo de volta escalonada e, ao longo de outubro, outros estados irão retornar”.
Para Costin, o retorno pode ajudar nessas dificuldades de infraestrutura do ensino remoto, mas ela reforça que isso tem que ser feito com segurança, e seguindo as recomendações dos profissionais de saúde. “Vamos voltar às aulas antes de ter uma vacina com 100% de eficácia. Vamos voltar com o vírus no ar. Ao fazer isso, teremos um rodízio de alunos para diminuir o tamanho das turmas. Nesse contexto, estaremos mais organizados para o ensino híbrido. Com a escola aberta, será mais fácil mandar equipamento para os alunos e pensar nesse aspecto da conectividade”, finaliza.
Foto: CRÉDITOS: DIVULGAÇÃO / CONSED
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