Especialistas apontam desigualdade social, racismo e crime organizado como responsáveis por alta letalidade
A América Central e América do Sul são as regiões mais violentas e lideram o número de homicídios no mundo. O dado é do relatório global sobre homicídios do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), da Organização das Nações Unidas (ONU).
O documento, divulgado esta semana, estima que 464 mil pessoas foram vítimas de homicídios intencionais em 2017 em todo o mundo. Os territórios americanos mantiveram altos índices, mas a tendência global das últimas três décadas é a diminuição das taxas de homicídio, segundo o relatório.
Enquanto a média global é de 6,1 homicídios a cada 100 mil habitantes, a América Central e a América do Sul têm 25,9 e 24,2 a cada 100 mil pessoas, respectivamente. Nas Américas, que concentram 37% dos homicídios, as principais causas de morte estão relacionadas ao uso de armas de fogo.
O segundo continente mais violento é a África, que concentra 35% dos assassinatos. A taxa de homicídios na África (13,0) é menor que nas Américas (17,2) – embora o estudo da ONU pondere que a falta de dados consistentes em vários países africanos compromete a análise.
Análise
Embora o estudo mostre que o número de homicídios aumentou de quase 400 mil em 1992 para mais de 460 mil em 2017, o relatório explica que a taxa global real caiu (de 7,2 em 1992 para 6,1 em 2017) quando levado em conta o crescimento populacional.
Professor de Direito Internacional e integrante do Núcleo de Estudos para a Paz da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Gustavo Oliveira Vieira afirma que há um conjunto de fatores que explicam esse fenômeno na região. “Crime organizado com desigualdade social é um tempero que acaba fomentando a violência”, resume.
“O que a gente pode concluir é que existe uma disfuncionalidade institucional e histórica que acontece para termos um dado que é cinco vezes mais que a média mundial de homicídios intencionais”, pontua Vieira. “Parte disso é a necessidade de desenhos, de políticas públicas específicas”.
O professor também atribui os altos índices de homicídios à ineficiência da justiça criminal e à baixa taxa de resoluções sobre os crimes. “Tem estados que chegam a ter apenas 4% de homicídios em que se consegue identificar a autoria”, lembra. Essa fragilidade, segundo o especialista, transmite uma sensação de que quem mata pode ficar impune.
A advogada Dina Alves, do departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), concorda: “A justiça criminal é um elemento importante de produção de violência”, diz. “Tem uma ineficiência da Justiça, até porque, quando a gente pensa no encarceramento, a maioria da população não está presa porque cometeu algum tipo de homicídio, mas por conta da guerra às drogas”, completa.
Alves afirma que é importante levar em conta o recorte racial dos dados quando se analisa a realidade latino-americana e brasileira. “Nas nações fundadas na escravidão como Brasil, Bolívia, México e nações da América Central, um elemento fundante que pode nos dar respostas é o racismo e a violência contra grupos historicamente discriminados, como a população negra e indígena”, finaliza.
Cenário brasileiro
Com 30,5 homicídios a cada 100 mil habitantes, o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios da América do Sul, atrás apenas da Venezuela. O relatório aponta um “aumento dramático” de 350% do número de homicídios no país vizinho, que passou de 13 para 56,8 homicídios a cada 100 mil habitantes.
O relatório chama atenção para certas disparidades. Em números absolutos, o país africano Nigéria e o Brasil, que respondem por cerca de 5% da população global, concentram cerca de 28% dos homicídios no mundo. Mesmo com a maior população entre os continentes, a Ásia aparece em terceiro lugar no ranking dos continentes mais violentos em números absolutos, concentrando 23% dos casos.
Outro alerta do relatório é o alto número de homicídios cometidos por policiais no Brasil na comparação com outros países das Américas. Em 2015, a polícia no Brasil assassinou 1.599 pessoas – em El Salvador, um dos países mais perigosos da América Central, foram 218; nos Estados Unidos, 442; na Jamaica, 90. No mesmo ano, 80 policiais foram mortos no Brasil, contra 33 em El Salvador, 41 nos Estados Unidos e oito na Jamaica.
Alves pondera que os dados de violência policial no país são subnotificados e que em 90% dos casos são abertos inquéritos inconclusivos. Para a advogada, o poder público não tem dado respostas adequadas à alta letalidade. Ela pontua que o principal projeto do ministro da Justiça, Sérgio Moro, para a segurança pública, o pacote “anticrime”, pode aumentar ainda mais a violência no país.
Moro apresentou a proposta em fevereiro. O projeto, que foi fatiado em três para tramitar no Congresso Nacional, altera 14 leis, incluindo o Código Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes Hediondos e o Código Eleitoral.
O pacote prevê a redução da condenação ou a não aplicação dela quando agentes de segurança agem em legítima defesa, além de mudar a definição de organização criminosa.
“O Brasil está criando programas para acelerar a violência”, diz a advogada. “O pacote ‘anticrime’ dá carta branca para que a polícia mate. O alargamento da hipótese de legítima defesa para que o policial seja perdoado ou tenha sua pena diminuída é uma autorização para matar”.
A proposta também determinava a execução da pena após o julgamento em segunda instância, mas esse ponto foi retirado nesta terça-feira (9) pelo grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que analisa o pacote apresentado pelo ministro.
Em fevereiro, entidades e organizações do movimento negro brasileiro protocolaram uma denúncia contra o projeto na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA). No documento, os movimentos denunciam diversos pontos que tendem a prejudicar diretamente a realidade da população negra.
Outras estatísticas
O crime organizado foi responsável por 19% de todos os homicídios e “causou muito mais mortes em todo o mundo do que conflitos armados e terrorismo, combinados”, pontua o relatório. A partir de uma análise de gênero, constatou-se que meninos e homens entre 15 e 29 anos são os que mais correm risco de homicídio globalmente. Mas o documento também alerta que, embora mulheres e meninas representam uma porcentagem menor de vítimas em relação aos homens, elas continuam lidando com os homicídios cometidos por parceiros íntimos ou por familiares. Mais de nove a cada dez suspeitos em casos de homicídio são homens.
Fonte: Brasil de Fato – Rute Pina
Edição: Daniel Giovanaz
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