As primeiras edições feitas sob o crivo do governo inspiram temores e autocensura
O ano era 1964. Chegava às salas de aula um livro que marcaria um triste capítulo da história da educação brasileira. Escrito por um sociólogo militar com a ajuda de jovens historiadores, História Nova do Brasil não tinha nada de subversivo. Amparava-se no marxismo, porém, para explicar a história econômica do País. Bastou para que os generais golpistas sumissem com os exemplares distribuídos. E para que seu autor, Nelson Werneck, perdesse os direitos políticos pelos próximos dez anos. Interrompia-se ali o processo de modernização que floresceu nos anos JK. Não foi necessário, porém, invadir bibliotecas e repartições. “As editoras entenderam o recado e passaram a se autocensurar”, pontua a historiadora Circe Bittencourt, organizadora do Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros, a maior biblioteca desse gênero do País.
Quase seis décadas depois, a história parece se repetir. Chegarão nas escolas em 2021 os primeiros livros produzidos sob a batuta do governo Bolsonaro. Apenas para o Ensino Médio, por enquanto. E já não mais definidos por disciplinas, mas pela proposta de ensino integrado definida pela controversa reforma do governo Temer. A seleção do material abrirá um novo terreno de batalha ideológica na educação, talvez o setor mais aviltado pelos novos donos do poder. Em conversa com jornalistas no último dia 3, o presidente antecipou seus planos. Sem que qualquer repórter pergunta se, alardeou a notícia. Chamou os livros didáticos brasileiros de “lixo”. Também prometeu “suavizar” o “amontoado de muita coisa escrita” que, segundo ele, caracterizou a produção dessas obras até aqui. A declaração causou mais pavor entre educadores do que a ameaça de guerra com o Irã. E com razão. Bolsonaro não mentia quando disse que as obras perderão tamanho. Os livros da nova fornada deverão ter entre 160 e 320 páginas, conforme as regras do edital do Programa Nacional do Livro Didático, divulgado (com atraso) no mês passado. Antes, podiam ter até 1.000 páginas. O material que serve de apoio aos professores também afinou. Perde-se assim muito da base científica e pedagógica para preparar as aulas. Ganha-se em troca o apoio de vídeos de até 10 minutos com linguagem “atrativa” e de “fácil entendimento”, como os do YouTube. Uma pitada de cada conteúdo passa a ser suficiente.
Estima-se que as editoras invistam 1,5 milhão na produção de uma coleção de livros didáticos. Num mercado altamente dependente do dinheiro público, a pressão para emplacar uma coleção na lista ganha contornos ainda mais gravosos debaixo das ameaças do governo. As editoras têm eliminado em casa, desde o ano passado, eventuais “polêmicas” que possam desagradar e atrapalhar os negócios. O conteúdo muitas vezes é alterado ainda na fase inicial de produção.
CartaCapital ouviu editores das maiores casas do ramo no País. O clima de autocensura, dizem, tem afetado principalmente as questões envolvendo o respeito à diversidade sexual e identidade de gênero, volta e meia atacados pelo presidente. “Na hora de escolher um texto para abrir um capítulo, autores gays foram descartados. Caio Fernando Abreu, Jamais”, relatou uma das fontes envolvidas na feitura das obras de Literatura. Outro encarte sobre literatura homoerótica foi descartado “logo de cara”. A ofensiva escora-se no pânico moral e no fantasma do kit gay, tantas vezes desmentido. Em outra declaração sobre esses livros, o presidente disparou: “O pai quer que o filho seja homem e que a menina seja mulher, coisa óbvia”. Bandeiras caras à agenda da ministra Damares Alves, como o suicídio entre adolescentes e o enfrentamento ao bullying, ganharam mais espaço.
Outra preocupação são os capítulos sobre a ditadura. Para evitar cair em eufemismos como regime (ou revisionismos como revolução ou movimento), os autores usarão o termo “ditadura civil-militar”, conforme manda a lei. É improvável, porém, que uma foto de protestos esteja estampada em destaque. “Tem sido o horror dos horrores, porque ninguém quer ser reprovado. Então certas coisas são amenizadas, substituídas”, resume. Outra reclamação é a dificuldade em adaptar o trabalho feito até aqui a obras generalistas e mais enxutas. “Os editores têm consciência de que os livros ficarão mais fracos. Para transformar os livros em interdisciplinares, cada matéria perdeu um pouco de espaço. Ou seja, perdeu conteúdo.” A mudança também afeta o caixa, uma vez que o preço de venda de cada livro é calculado conforme o número de páginas. O clima de caça às bruxas também afeta a produção literária de ficção. Nesse caso, literalmente. No ano passado, o clube de assinaturas Leiturinha, o maior do País, vetou em seu edital de seleção livros protagonizados por bruxas, fadas, duendes e outros seres mágicos. O motivo? As tais figuras são consideradas demoníacas por certas ordens religiosas. A empresa voltou atrás depois da repercussão negativa do caso no meio editorial. A rejeição nas escolas e lares, entretanto, corre ainda a pleno vapor.
Naquele mesmo dia em que enxovalhou os livros didáticos, Bolsonaro elogiou a cartilha Caminho Suave, base da alfabetização durante a ditadura. Entre especialistas, porém, as lembranças no livro são bem menos airosas. A decoreba de frases soltas e desconexas como “vovô viu a uva” contribuiu para as dificuldades e desgosto com a leitura e a escrita que até hoje assolam a vida brasileira. Já o método Paulo Freire vai na direção contrária: o essencial é ensinar a pensar a palavra em seu texto e contexto. Sua obra-prima, a Pedagogia do Oprimido, é a mais citada nas cátedras de ciências sociais. Freire também foi secretário municipal de Educação em São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1993). Entre outros feitos, melhorou o índice de aprovação, implantou conselhos escolares e ampliou a educação de adultos.
A política nacional dos livros didáticos recebe críticas à direita e à esquerda. As modernas escolas construtivistas, por exemplo, criticam o material por comprometer a autonomia do professor. Mas é inegável que essas obras são essenciais à realidade escolar brasileira. A maioria dos estudantes brasileiros tem pais e mães que passaram poucos anos na escola. E, em muitos lares, os livros recebidos de graça na escola são os únicos na estante além da Bíblia.
Para a educadora Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do MEC, o governo equivoca-se e desinforma. “Não existe doutrinação, isso é uma bobagem. A escola precisa de livros plurais, de visões diferentes. É nesse caldo de cultura que o aluno ganha os recursos para formar a própria opinião e se colocar como sujeito no mundo.” Quanto melhores e mais diversos esses livros, diz, mais se beneficiam os alunos e professores. “Doutrinação quem faz são as igrejas e os partidos políticos.”
Apesar das intenções do governo, a lei impõe algumas garantias por meio da Base Nacional Comum Curricular. Essas obras são obrigadas, por exemplo, a promover positivamente a imagem das mulheres, dos negros e das populações indígenas e quilombolas. Além disso, os livros selecionados devem estar livres de doutrinação religiosa e preconceitos de classe, origem, etnia, gênero, orientação sexual, de idade, de linguagem, de deficiência e outros. Ficam vedadas também a apologia da violência e a violação de direitos humanos. Se não a cumprir, o ministro Abraham Weintraub comete improbidade administrativa.
Seu ministério não repassou até agora os 105 milhões de reais prometidos para tirar a BNCC do papel. A franja mais amalucada do bolsonarismo, aliás, volta e meia clama pela extinção da lei. Talvez inspirados pelo macarthismo americano, que extinguiu o currículo unificado nas escolas dos EUA. A falta de controle e fiscalização pública abriu espaço para o crescimento de várias editoras de “pedagogia religiosa”. Em 2008, o jornal Orlando Sentinel mostrou que o material usado por escolas cristãs subsidiadas da Flórida retratava humanos e dinossauros vivendo juntos (um arredondamento de… 65 milhões de anos). A escravidão na região era narrada como período de harmonia. A luta pela abolição só ocorreu porque “indivíduos sedentos de poder agitaram o povo”.
Aquele processo de modernização interrompido pela ditadura só voltaria a vigorar em 1985, quando renasceu a Política Nacional do Livro Didático. Dali em diante, esse material passaria por uma triagem científica e pedagógica antes de chegar às escolas. A partir dessa lista, caberia aos professores e diretores escolher o material mais adequado à própria realidade. Os problemas de distribuição só cessaram no fim dos anos 90, já sob o governo FHC. Esses avanços incrementais perderam força no governo Temer (a BNCC do Ensino Médio, por exemplo, não contou com o aval de conselhos civis). Agora, o risco de retrocesso é ainda maior. Embora o governo não tenha poder de mudar as regras do jogo, pode privilegiar, dentro das regras, o material que mais perto chegar do limite razoável. Fica mais fácil quando parte desse trabalho tem sido adiantada dentro das próprias editoras.
Fonte: Carta Capital | Foto: Nina Lima
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