Em 1938, a literatura brasileira recebia de presente a publicação de um dos principais romances daquela década: Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Com uma linguagem econômica e direta, a obra narra a dura caminhada pelo sertão nordestino de uma família de retirantes: o vaqueiro Fabiano, sua esposa Sinhá Vitória, os dois filhos do casal e a cachorra Baleia. Sem lugar fixo, em meio ao domínio da seca e sob a opressão do meio social, eles buscam a sobrevivência. O livro, que já vendeu mais de um milhão e meio de exemplares, ganhou neste mês uma edição especial, com fotos de Evandro Teixeira, em comemoração aos seus 70 anos de publicação. Natural da Bahia, Teixeira – que em 1997 publicou Canudos 100 anos – percorreu o sertão de Pernambuco e Alagoas, durante dez dias, registrando o universo retratado por Graciliano.
Para Wander Melo Miranda, professor titular de Teoria da Literatura da UFMG e responsável pelo projeto de reedição das obras do escritor para a editora Record, um dos motivos da força de Vidas Secas, além da qualidade estética, é a sua atualidade. “A problemática do livro continua existindo para nós. Ele tem essa enorme atualidade, essa grande capacidade de registrar a barbárie que leva as personagens a uma movimentação sem sair do lugar. Apesar de todos os avanços tecnológicos, econômicos e políticos, essa barbárie continua a nos rondar. Não é só no Brasil, é uma questão global. Talvez no Brasil seja mais visível, mais premente, como em outros países menos desenvolvidos”, sentencia Wander Melo, autor de duas obras sobre o escritor alagoano (Folha Explica Graciliano Ramos e Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago).
Obsessivo em relação ao ofício da escrita, Graciliano chegava a refazer trechos e mais trechos de suas obras. Em uma carta endereçada ao poeta mineiro Octávio Dias Leite, em setembro de 1937, ele pede desculpas por não poder ir à capital mineira, pois estava “horrivelmente ocupado”, entregue às dificuldades do ofício de escrever. “O livro tinha três nomes. Tem uma carta dele, que descobri e está aqui no Acervo de Escritores Mineiros, em que ele diz que não pode vir a Belo Horizonte porque está finalizando um romance. Ele escreve: ‘estou terminando as minhas Cardinheiras’. Esse título ninguém sabia a não ser por essa carta. Cardinheiras são as aves de arribação, presentes no capítulo O mundo coberto de penas, que era o primeiro título do livro. A obra vai para a gráfica com esse título e, no momento da revisão, ele risca e escreve Vidas Secas”, conta Wander Melo.
Editado em mais de 15 países, entre eles Rússia, Cuba, França, Estados Unidos, Romênia, Suécia e Holanda, Vidas Secas recebeu em 1962 o prêmio da Fundação William Faulkner (EUA) como livro representativo da literatura brasileira contemporânea. Ainda em comemoração aos seus 70 anos, a Record também lançou um site com informações sobre as obras e a vida do escritor, inclusive com fotos pessoais (www.graciliano.com.br).
Por que Graciliano Ramos se destacou entre os regionalistas de 30?Wander Melo: Graciliano se destaca, em primeiro lugar, pela elaboração lingüística. A sua sobriedade formal é espantosa. Ele pega a língua regional e faz uma elaboração que não é uma mera transcrição dessa língua. Faz uma verdadeira revolução, acredito que silenciosa. Segundo, o que o interessa principalmente é a subjetividade das personagens, a maneira como elas vão reagir diante de determinadas situações. O caso de Vidas Secas é o da reação, do modo como as personagens pensam e sentem, diante de extrema penúria, miséria e carência. Acredito que Graciliano está interessado nesse conflito, nesse drama do humano. Sintetizando, Graciliano é um autor minimalista, que tem uma noção de língua imensa, uma noção de ritmo narrativo bem forte, que o diferencia não só dos demais do regionalismo de 30, mas também de todos os outros escritores brasileiros do século 20.
Vidas Secas é também o seu romance mais lembrado. Por quê?WM: Vidas Secas é o primeiro romance do Graciliano em terceira pessoa, o que faz com ele consiga se aproximar mais dos desvalidos: Fabiano, Sinhá Vitória, a cachorrinha Baleia, o Menino mais velho e o Menino mais novo. Ele tenta se aproximar deles com um olhar de solidariedade. Para isso o escritor utiliza um recurso discursivo, uma técnica narrativa, o chamado discurso indireto livre, o que vai fazer com que a gente se aproxime muito também dessas personagens. Não é questão de sentir pena, mas de se solidarizar com essas personagens e tentar, de alguma forma, se comover com a caminhada dos retirantes e com esse grau de extrema carência em que eles vivem. Além disso, a problemática do livro continua existindo para nós. Quer dizer, as pessoas desvalidas, sem-terra, sem-casa, os retirantes, os imigrantes no mundo todo, pessoas mudando, indo de um país para outro em busca de sobrevivência, isso é mais do que atual, infelizmente.
E os personagens acabam que não conseguem mudar a situação em que vivem… WM: Não conseguem por razões históricas e políticas bem objetivas. Graciliano poderia querer fazer um romance panfletário, que dali saísse um revolucionário. Não vai sair dali um revolucionário. Fabiano não vai ser um revolucionário. Ele vai tentar é sobreviver, não morrer de fome e de sede com a família.
Essa é mesmo a obra em que o escritor mais aprofunda a crítica a uma determinada realidade social? WM: Claro, tem uma crítica muito forte do início ao fim. Não há uma crítica panfletária, pois se fosse, ela se esgotaria naquele momento histórico, apesar dos problemas continuarem. Mas eles continuam de outra forma, não é? A meu ver, há uma crítica feroz ao capitalismo. É profunda, porque ela pega aquilo em que o capitalismo mais atinge as pessoas, que é o âmago delas, as suas subjetividades. Graciliano teve uma acuidade, uma argúcia para apreender a psicologia, a subjetividade do ser humano, da mesma forma que ele teve capacidade e argúcia para perceber a realidade histórica e econômica do país e do mundo. Agora, isso é passado pelo filtro da arte. O interessante é que a obra, nos momentos mais críticos, é toda escrita no condicional: seria, faria, iria, poderia. Isso dá também uma instabilidade ao livro, eles [a família] estão em um estado de instabilidade absoluta, não têm nada em que possam se agarrar. No final, eles vão para a cidade, mais aí o trecho é todo no condicional, pode acontecer como pode não acontecer. Ir para a cidade é uma possibilidade de saída daquele círculo infernal. Eu costumo dizer que a continuação de Vidas Secas é A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. A Hora… retrata Macabéa [a protagonista] na cidade. Ela sabe ler mais ou menos, digita, escreve errado, datilografa porcamente… Seria uma espécie de continuação, o que poderia acontecer aos retirantes do nordeste que chegam à cidade grande. Acho que o mais importante, e Antonio Candido ou outro crítico já ressaltou, é que se trata do livro menos pessimista de Graciliano, apesar de tudo. Nessa obra parece que há um pouco mais de esperança. É uma possibilidade, e o escritor não afirma que vai melhorar, e realmente a perspectiva dentro do livro é que não melhore, mas nada impede que eles possam melhorar. Sinhá Vitória mantém essa esperança. Então é aquela famosa frase: entre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. Graciliano vai trabalhar nesse diapasão.
Muito se fala do aspecto da comunicação na obra, da dificuldade do diálogo, o que resultaria na animalização de Fabiano. Qual a sua opinião a respeito disso? WM: Eu sou contra essa tese. Não acho que haja animalização de nenhum personagem. Uma crítica holandesa aponta que a família se comunica, porém de outra maneira. Para se comunicar numa situação de seca, em que uma gota de água é importante, você não pode falar muito, gesticular muito, ser efusivo. Tem que ter gestos parcos, poucas palavras. A comunicação é feita por aí. Eles têm uma dificuldade de se comunicarem com quem está fora do mundo deles, com a gente da cidade, com o patrão, por causa da barreira social. Entre eles há comunicação pelos gestos, pelo olhar, algo muito mais corporal do que verbal. Agora, essa comunicação é muito sóbria também: ninguém abraça ninguém, ninguém beija ninguém. Isso é uma questão até de verossimilhança. Você não poderia imaginar uma pessoa naquela situação cantando, rindo, pulando, falando. Os gestos são comedidos, a fala é escassa.
Então há sim uma complexidade psicológica dos personagens?WM: E muito grande. Acho muito interessante, e fico pensando o seguinte: Graciliano não foi um escritor que veio de uma classe pobre. Ele veio de uma família tradicional, de uma classe social dominante, chegou a ser prefeito de uma cidade do interior [de Alagoas] e assumiu um cargo semelhante ao de secretário estadual de educação. O que acho interessante nele é essa tentativa de se aproximar do outro, daquele que você não entende. É como se nós, que somos da classe média, tentássemos escrever um romance sobre um mendigo, um sem-teto. Acho isso admirável. Por isso a obra tem uma força, uma beleza. Mesmo que se resolva o problema da seca, o livro nunca vai passar. Hoje, neste momento, alguém está abrindo esse livro e entrando nesse mundo muito específico, tendo uma experiência insubstituível.>> Confira abaixo uma reportagem feita pelo Ministério da Educação sobre Graciliano Ramos.
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